domingo, 11 de dezembro de 2011

CRÔNICAS DOS COVEIROS DO CEMITÉRIO VERDE - XVIII - VÍTIMAS DO PRAZER

A peste negra medieval e a tuberculose romântica fizerem suas milhares de vítimas. Indiferentes e cruéis, como tantas epidemias e microorganismos inéditos, até que a ciência, pela permissão de Deus, as dominou.
Mas ainda assim continuam à espreita, emboscando desavisados, em que possam operar o definhamento e engolfar na morte.
Assim também é com muitas doenças sexualmente transmissíveis. Ouviram?! Jovens de todas as idades?
Para falar de uma, a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida – AIDS é de uma atrocidade incomensurável! Involuntariamente adquirida num arrebatamento de prazer ou no descuido da higiene, só a prevenção pode detê-la por enquanto...
E todo cuidado é pouquíssimo! Ouviram?! Jovens de todas as idades? (Tive que reprisar a perguntar, porque há adolescentes de todas as idades, quarenta, cinqüenta, sessenta anos...)
Num momento inopinado, em que a libido ou a fuga psicotrópica, ou a imprudência desvanecem a atenção, ela ataca implacável, impiamente.
Perto do Natal, uma vistosa jovem caminhava pelas ruas do cemitério com passos contados e um pedaço de papel na mão, no qual trazia o endereço da Necrópole e coordenadas do jazigo de seus avôs. Avistou um grupo de sepultadores ali perto, e foi ter com eles:
- Por favor, vocês podem-me dizer como é que eu faço pra chegar nesse túmulo aqui ó? – Era bem jovem, atraente, loura, esguia e bonita.
- Ah! Sim. Eu levo a senhora. Ou senhorita? – respondeu Macarrão sendo fisicamente atalhado pelo Retardatário que instou em levar a moça.
Cada qual com seus interesses: o Retardatário queria contratar algum possível trabalho “impróprio”, e o outro desfrutar da exuberância da dona formosa.
Macarrão venceu a pendenga, discretamente, sussurrando ao ouvido do outro, enquanto puxava a manga da camisa, que ele devia dinheiro da partilha de uma caixinha misteriosamente desaparecida há algumas semanas – “Cê vai querer zuar comigo de novo Retardário?”.
Macarrão levou a moça à atual “casa” dos avôs.
Diante do sepulcro enegrecido de sujeira e de tempo, com o mato rasgando as fendas no cimento, a mulher rezou durante uns dez minutos.
A voz da reza comprimida na garganta como quem não se resigna com um acontecimento. Daí rebentou em ruidosa emoção.
Uma mulher tão bela chorando na frente daquele conquistador barato ensejava a oportunidade da aproximação. O coveiro Dom Juan do Cemitério Verde não perderia a chance: pôs-se a acalentar a jovem com afagos na cabeça.
- Éhh!!... – justificava seu pranto a mulher, após rechaçar o carinho de Macarrão – “Quem vê cara, não vê coração”, não é assim que se diz? Deixa pegar na bolsa... Cadê? Aqui... Achei. Isto é um exame de sangue que eu peguei hoje de manhã: HIV positivo. Eu tenho AIDS.
Silêncio. Choro calado nos olhares perdidos.
Macarrão não sabia o que dizer. Não disse nada. Sentia agora uma repulsa mesclada com compaixão, e os olhos vividos não retiveram o princípio das lágrimas que lhes desceram pelas faces.
Abraçou a mulher, forte e comovidamente, e a pedido, partiu deixando-a só com sua finidade.
Dali a meses, houve um enterro de um corpo sem alma soro positivo.
Macarrão correu até o plantão do dia e questionou a localização da campa, se era cadáver feminino, se foi mulher loura e se abriram o caixão - tão atabalhoado esqueceu que as doenças infectocontagiosas lacram os corpos em folhas metálicas.
Para seu alívio egoísta, não foi loura nem era mulher. Era um jovem rapaz vitimado por algum prazer.
De longe, Macarrão observava o enterro e os circunstantes. Rostos esqueléticos, corpos finos. Todos portadores da maldição em flagrante combate contra a destruição, a cantarolar jovens astros da música, vítimas recentes e iguais da mesma moléstia misteriosa.
Ele lembrou-se da mulher alourada e se viu à mesa do jantar com sua esposa e filhos, rindo-se todos da beleza da vida. Veneradamente ajoelhou!
Chorou com tanta paixão que parecia, ele mesmo, em vida, estar-se contido naquele caixão – partindo, contrariando a dádiva da vida, refém de um destino insondável.

GRACIAS ANDINAS