quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Um sonho no papel

Correndo, brandindo as páginas do seu projeto de casa de cultura na cidade natal, veio o homem maduro anunciar aos companheiros de frustração o quanto o tinha esperançado o diálogo com a secretária da pasta municipal.
Dizia-se ditoso de ter escolhido as melhores palavras escritas e a dicção mais apropriada ao encontro matutino na modesta sala oficial, onde expôs sucintamente todos os sonhos que vinha nutrindo desde a infância, agora numa diagramação acadêmica escorreita.
No meio do caminho, ao recapitular as falas, lembrava-se da notícia fatídica do fechamento do cinema, apenas poucas horas depois de ter assistido a um filme alemão que só ali tinha sido exibido.
Lembrou-se do festival de música na praça da matriz, quando os bons violeiros dos botequins se juntavam aos inovadores musicistas e jovens bisonhos minimalistas numa festa de originalidade.
Os campeonatos de balões, os folguedos juninos, as congadas, as corridas de cavalos na cancha onde asfaltaram a principal artéria com a capital.
Rememorou as fanfarras escolares e quase ouvia a música negra dos bailes domésticos que pululavam nos quadrantes da cidade.
Veio-lhe a sensação de vertigem e desafio que teve quando vestiu o primeiro uniforme escolar, com calças curtas, e sentiu o cheiro do pó do giz, pela primeira vez, acumulado no suporte do apagador da lousa - a brilhante idéia de escrever à frente dos olhos, o que ele treinava com os irmãos, sentados na guia, com um pedaço de tijolo, rascunhando no chão da calçada.
Lembrou-se dos namoricos, romances doloridos da meninice, quando os olhares eram ensaiados nos espelhos e os discursos imitados de uma fita americana em preto e branco.
Sentiu os aromas, de memória, dos bolos e tortas que as vizinhas trocavam para se agradarem. Viu as estrelas que queriam se amostrar no céu isento do progresso.
Reviveu a agitação e o entusiasmo dos estudantes, das descobertas dos signos, da militância proibida, aguerrida, de que, embora não tivesse feito parte, guardava a reverência na ostentação das boinas, no despojamento da roupa carmesim e nas palavras de ordem que proferia nas lutas menores da sua contemporaneidade.
Estacou. Sorriu. Foi feliz uma vez. Por que não poderia sê-lo de novo?

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Olhar

Procuro o olhar cuja dona eu desconheço;
Que nunca vi;
Que apenas penso existir.

O olhar que não penso, mas que existe:
No etéreo, no eterno, em mim.

O olhar que não tem rosto adequado,
Mas que no rosto inato se adequará.

Procuro o olhar cuja dona eu desconheço;
Que me desconhece;
Mas pelo olhar nos identificará.

O olhar que não sei definir;
No tamanho, na íris, no cenho;

O olhar sem moldura;
Sem cor, sem tom certo...

Procuro o olhar mais inteligente,
Mais safo. Mais limpo. Mais sábio. Divino!
O olhar que procuro e que parece não existir


Será o teu?

Defesa do cronista por uma crônica criticada

A crônica unia futebol – mais especificamente um jogador muitíssimo badalado -, a tragédia do Rio de Janeiro e uma atriz global. Registro: atriz da rede Globo de televisão. (Convém dizer, pois no futuro próximo - a julgar pela queda de audiência e surgimento de concorrentes à altura - do que não advém qualquer mérito -, as gerações vindouras não compreendam de imediato o que significa a expressão “atriz global”).
O foco não era claramente nenhum deles, mas o pretexto – ou pano de fundo - era a tragédia; o jogador entrou na história como aquele que, segundo a massa, deveria doar um salário para as vítimas; e a atriz? Bem, ela entrou como um argumento de autoridade da plebe, uma porta-voz do povo a robustecer a tese a qual o escritor atacou veementemente no seu texto.
A real intenção do cronista: demolir a opinião popular de que quem vem de comer capim, nunca chegará a jardineiro.
O cronista da ESPN disse que a opinião era um recalque, pois o povo requerer ao jogador uma paga como doação aos flagelados, e a atriz dizer que profissionais daquela categoria não tinham classe ou educação (ou algo assim), não tinham fundamento na realidade, senão apenas no repúdio ao sucesso dos indivíduos de classes menos abastadas que atingiram os píncaros da fortuna e da fama.
O resultado do texto não foi dos melhores, por isso um amigo fez uma bela crítica do efeito, da inteligibilidade, do foco, enfim do cronista profissional.
Disse ao amigo, em defesa do cronista, que não é fácil sê-lo.
O camarada tem o dever de produzir um texto pré-diagramado, necessariamente empolgante, num prazo curtíssimo.
Convulsionando entre tais deveres e as morais que pairam dentro e fora das salas dos editores, o cronista concilia seus próprios pensamentos e opera muitas vezes um milagre: dá à luz uma forma diferente de ver o que quase todo mundo vê igual.
O efeito nem sempre é interessante a todos. Se não for interessante a ninguém, aí o cabra corre o risco de perder o emprego. Mas, se viver é um risco...
O texto assim produzido ocupará seu lugar no anverso de uma propaganda paga em algum magazine ou espaço-tempo de outro meio de comunicação.
Na verdade o cronista estava farto do que vinha exalando dos poros midiáticos nas últimas semanas, com o pretexto de referir-se à tragédia do Rio: opiniões, “achismos” e conversinhas balofas. Ninguém se atrevia a falar sobre o descalabro das políticas públicas de assentamento urbano; da desigualdade da distribuição fundiária e da concentração de terras em poucas mãos; do prejuízo da falta de reforma agrária, etc.
Ao contrário, o cronista via desconversas custosas no anverso de propagandas pagas antes e depois da sua página.
Estou com ele: a tragédia do Rio de Janeiro é nossa.

domingo, 16 de janeiro de 2011

A tragédia do Rio é nossa

A vergonha só não é maior que a tristeza - a compaixão de todo o coração, sinal ainda de nossa humanidade, que nasce espontaneamente ante uma tragédia deste tamanho.
No dia 12 de janeiro choveu mais chuva que as encostas da região serrana do Rio de Janeiro e a hidrografia puderam suportar, arrasando as cidades de Teresópolis, Petrópolis e Nova Friburgo. Até agora contaram seiscentos mortos, milhares de desabrigados e um sem-número de desaparecidos.
Uma rede de solidariedade se formou incontinenti, pulverizada em todas as partes do país e das instituições.
Mas, lamentável – com o que nunca nos acostumaremos - é o efeito da desgraça sobre a ganância: logo os alimentos se apreçaram, os combustíveis e tudo tiveram ágio e, o mais grave, as pilhagens fizeram moradores alternarem-se na vigia de seus escombros, contra eventuais novas investidas da natureza, e para inibir os saques que logo ganharam vulto nas cidades assoladas.
Que indignidade! A calamidade, para uma corja de malditos, não significa senão oportunidade de obter vantagem econômica.
Autoridades e homens de boa vontade se sobrecarregaram com a atividade de detectar e prender os praticantes da vilania. Prendam esses canalhas, senhores!
Num esforço mínimo de empatia, sinto a angústia e o medo das vítimas, agora despojadas do equilíbrio e da aparente segurança de suas vidas; largadas na desolação do cenário de soterramento do mundo que conheciam, onde construíram suas moradas físicas e seu repouso espiritual; agora sós sem rumo e sem referência, esperando que o socorro os resgate do inferno e lhes preserve o mínimo de dignidade contra, inclusive, tais assaltantes.  
Importa discutir a gênese dessa fragilidade, neste momento? Sim, é sempre tempo, é sempre oportunidade de falar da grande farsa que representamos.
Atrás e além do espetáculo que a imprensa mostra, se esconde um homem social que não consegue viver em sociedade equilibrada e perene.
A região foi se povoando pela encostas, em lotes demarcados, legitimados e vendidos com anuência, conivência ou descaso das autoridades fundiárias, a despeito de qualquer sinalização de perigo que os operadores de tecnologias tivessem dado.
No amálgama de cores, raças e diferenças sociais, agora caliças do mesmo entulho, está soterrada a mentira de que queríamos viver em paz com todos. Queremos, sim, ter alguma propriedade para assentar os planos e destinos de nossa prole e dá-lhes alguma segurança para o futuro. Segurança que as políticas públicas não nos dão; nem esperamos mais!
Os tipos facínoras que saqueiam os destroços, abutres das desgraças, são os deseducados suscetíveis da nossa política de educação, que pensa cadeira escolar e patrocínio de carnavais como cultura determinante da formação de belos espíritos.
Esse tema rende – e não sou o mais indicado para debatê-lo; mas agora oro para que os sobreviventes da tragédia, e todos nós, possamos entender os livramentos graciosamente dados por Deus!
Aos sobreviventes peço que não desistam, continuem crendo em Deus! Ele os guiará para a reconstrução e seguimento de suas vidas. Oremos para que a misericórdia seja também com os que se foram. Amém!

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Jonas e o BB

A imagem não é minha. É do Marcelo - um grande amigo!
Comparou nossa existência a um Big Brother (o reality show), em que não adianta tentar ocultar nossas mais discretas e mesquinhas intenções da observação de Deus.
Minha parte está em dizer que há um Jonas dentro de cada um de nós [“(...) filho de Amitai(...)”, a quem coube nos apresentar a ubiqüidade e onipotência de Deus num dos livros do Antigo Testamento que leva o seu nome].
[Sobre a tragédia do BBB outro dia eu digo, provavelmente lá nas opiniões.]
Jonas recebeu o encargo de pregar em Nínive, a terrível capital da Assíria de homens cruéis e perversos - tão sanguinolentos que abriam as madres das grávidas dos povos inimigos.
Com medo dos caras, tentou fugir num navio que veio a ser acometido por uma desesperadora tempestade. No fim de um breve inquérito a tripulação o arremessou no mar, ele foi engolido por uma baleia, e o fim vocês já devem saber: o peixe o vomitou em Nínive e ele se desobrigou da incumbência mais facilmente do que poderia ter suposto o mais otimista dos homens em todos os tempos.
Esse Jonas no BB somos nós, tentando esconder de nós mesmos e dos outros o desígnio para o qual fomos criados: propagar o amor de Deus.
Cabe mencionar (em reforço ao desvendamento do projeto divino): Jonas sofreu de um absurdo desencanto pela mudança de planos do Senhor; Deus se afastou da ira e poupou aquela gente.
Amuado então, desejando a morte, Jonas se isolou na praia - quente de fazer mal à saúde; Deus se apiedou e lhe concedeu a sombra de uma aboboreira.
Outra amostra dos mistérios da Providência: a planta frondosa e benfazeja que crescera num dia, no outro foi definhada. Jonas questionou o porquê, ao que Deus lhe disse: se sentia compaixão pela planta para cujo cultivo e desenvolvimento ele sequer moveu um músculo, como não teria Deus, compaixão de cento e vinte mil homens que não sabiam discernir entre a mão direita e a mão esquerda?
Êta! Jonas dentro de nós! Assim como os participantes dum reality show, também nos esquecemos das câmaras e agimos espontaneamente, escamoteando falhas de caráter (momentâneas às vezes, é verdade!), disfarçando nossos medos, sucumbindo a fantasmas, tramando em silêncio, conspirando em nome da autodefesa, da personalidade e dos dias materiais.
A cada participante que sai, como cada ser que morre, é de imaginar portas de estúdios se abrindo e a nulidade voltando à vida real - uma celebridade mundana fadada ao breve esquecimento.
Enquanto ficamos, nos parece tão naturalmente justificável os arrufos com as desditas por que passamos, que nem vemos as aboboreiras (o novo emprego, o novo amigo, o novo amor) que nos aparecem tão somente para que saibamos da bondade do Criador; e que as desinteligências comezinhas que nos levam a deslealdades por vezes brutais, acontecem por pura falta de discernimento.
Seja no reality show, seja na vida, um dia o programa acaba e devemos retornar.

domingo, 9 de janeiro de 2011

Rosto de Gente

Vi hoje no portal de notícias IG, que um grupo de pesquisadores de Darmouth – EUA fez experimentos para verificar a percepção que se tem de um rosto vivo, de gente de verdade, viva: ele tem que ser 2/3 mais humano do que um que não é; os olhos têm importante efeito para tal distinção, segundo nossa cognição.
Na breve matéria, mais informativa que discursiva - suponho conforme a natureza desse veículo na web -, não houve refutação da importância que se dá para qualquer rosto, real, de plástico, de pixels ou imaginário. Não mais se escreveu na oportunidade. Não mais li sobre o tema.
Então, segue rápida reflexão sem muitos mais elementos científicos, acerca da importância do rosto. Antes, parabenizo os atores e os artistas da animação, computadorizada ou desenhada, porque eles detêm conhecimento precedente à matéria, da importância do rosto.
As expressões que confeccionam nos rostos dos personagens nos convencem da humanidade dos bichos ou pessoas de mentira, que até nos esquecemos, naturalmente, de distingui-los falsos ou verdadeiros.
Nos emocionados mesmo! Com as vilanias nos indignamos e com a ternura nos sensibilizamos, seja no gato de botas do Shrek, seja no menino d’O Expresso Polar, seja nas latarias de Robôs.
Abro o leque para o fato de que nossos sentidos apontam mais ainda que a simples distinção do rosto de um vivo do de um morto, ou de um boneco.
Misteriosamente precisamos ver rostos, e necessariamente que tenham alguma expressão de sentimento, e obrigatoriamente que interajam conosco.
O rosto e as expressões de sentimentos que emoldura é um arquétipo sem o qual não podemos continuar vivendo mentalmente sãos.
A necessidade de interação justificaria nos associarmos sempre, em qualquer tempo e condição; a de expressão está nas artes cênicas e plásticas, podendo extrapolar ambas, em relações incríveis como o fetiche de bonecas sexuais tratadas como amantes de verdade ou a bola Wilson do Náufrago - sem expressão, é verdade! Mas com um rosto [de sangue], a partir do qual Chuck desenvolveu o exercício de humanidade.
Não viveremos sem rostos e expressões, podendo viver mal por causa dos rostos com más expressões.
Se as feições de alegria e tristeza são contagiantes, as de ódio fazem pontes para as violências.
Assim, peço duas coisas, se são tão importantes as expressões e o rosto: primeiro que não categorizemos numa estética de ocasião um tipo humano mais bonito do que outro; segundo que proporcionemos pela interação, expressões mais de simpatia e serenidade, do que de mesquinhez.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

A Paz do Perdão

Era véspera das bodas de pérola.
Fazia duas semanas que não se falavam, pois a briga foi retumbante e as ofensas de lado a lado, imperdoáveis.  
Simulando mal uma despretensão, o esposo intenta uma conversa na décima madrugada de insônia, febre e tosse.
 – Quem diria mulher, heim?! Casamos; eu ainda meninote, sem experiências de vida, sem eira nem beira! Agora: nossas casas, nossos carros, as mobílias... Eis aí nosso patrimônio! Que beleza! Nossos filhos lindos!
- Môrrrr, aahhh... – boceja a sonolenta consorte que, a despeito das mágoas recentes, oscila os movimentos entre o desvelo da vigília e os sonhos invadidos pela mesma preocupação de cuidar do marido-, me deixa dormir, vá! Me deiiiiiii... aahhh... – bota a mão na testa quente e úmida dele, mas não resiste e dorme. Está aferrada no sono.
- Mas, querida, você não vê o quanto crescemos, o quanto prosperamos...
E a porta abriu, rangendo e lenta, inundando todo o quarto de luz, ofuscando os bibelôs do aparador, destacando os retratos do início da vida do casal (a igreja, o bolo, os convivas; as lutas, as vitórias, as comemorações, e os rebentos... O hoje).
Assomou na claridade a silhueta torta de uma velha curva. Não se assustou; ao contrário, estendeu-lhe a mão oferecendo, cavalheiro, o canto mais macio da cama para que sentasse.
- Como vai, meu amado?
Seus olhos abriram até quase despejarem-se das órbitas, e o silêncio a tudo dominou. Era a sua mulher! A beleza juvenil da pele acetinada deu lugar ao tegumento rugoso; aqueles olhinhos atentos a todos os desenlaces dos dramas e desafios que enfrentaram juntos, durante os anos, eram os mesmos - apenas, e muito, envoltos em pregas, sulcos profundos que iam até a fronte; a vivacidade dos seus gestos diminuiu e a voz, gutural, por causa da traqueostomia.
Mas a doçura do perfume, os trejeitos, sua intenção, sua existência, em tudo era a mesma.
Deu-lhe um beijo casto na boca, acariciou sua face, rearranjou as madeixas de fios lisos – escassos por causa das sessões de quimioterapia -, que pendiam sobre o rosto sempre que ela meneava a cabeça no sinal peculiar de aprovação.
- Tome este chá e descanse meu amado! Repouse. Amanhã você estará melhor!
Refestelando-se a viu retirar-se devagar, e desaparecer na luz. Dormiu sem sobressaltos naquela noite.
Pela manhã olhou a esposa a seu lado: linda e indispensável! Soprou seu ouvido, ela abriu os olhos; ele ponderou:
- Quando as nossas energias se esgotarem no corpo, lembre-se – e nunca se esqueça - que o amor que nos damos é a força de que realmente precisamos. Perdoe-me!
Perdoaram-se mutuamente e fizeram amor como nos primeiros dias, na meninice de recém-casados sem experiências de vida, sem eira nem beira... Quando tudo era paz. 

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Adam – Memórias de Uma Guerra

Adam Stein é um talentoso artista judaico-alemão, um homem charmoso e feliz surpreendido pela brutalidade do nazismo.
A narração entrecortada da sua história pessoal cobre 35 anos, entre 1926 – quando seu universo circense de mágicas, telepatia, música e palhaçadas, em Berlin, nem sequer pressentia a sombria escalada de Hitler; até 1961 – quando nos dá a conhecer suas memórias, e a surreal clínica para doentes mentais semitas do Instituto Seiszling, instalado num deserto de Israel, para tratamento de ex-prisioneiros de campos de concentração nazistas.
Tudo da clínica é fantástico: a clínica e suas preconizadas terapias inovadoras não demonstradas; a conivência dos terapeutas com a excessiva liberdade de Adam; sua relação amorosa com a deliciosa chefa da enfermaria; e os casos-pacientes - especialmente o menino-cachorro que, com prováveis 12 anos destoava do critério inicial, ou seja: se os campos e a guerra acabaram em 1945 e o menino teria nascido em 1949, em tese, não teria sido encarcerado naqueles campos oficiais de flagelo.
Ficção menos improvável é o caráter do homem dentro do personagem Adam; é a dizimação de sua família, o esgotamento de sua lucidez após as mais absurdas humilhações por que passara nas mãos dum comandante do campo, aliás, homem cuja vida foi salva por Adam anos antes, num de seus números telepáticos em que desvendou e dissuadiu do suicídio, o futuro oficial da SS. Em recompensa (“uma vida por outra vida”), Adam devia entretê-lo vivendo literalmente como um cachorro adestrado, compartindo ossos e canil com o cão pastor alemão do comandante. Fez isso por um ano.
Como n’A vida é Bela, este é um filme sobre o holocausto que tentou ousar falar da dimensão do indivíduo, mantendo o devido respeito histórico a esse grave momento tão horrível do homem.
Sem compromisso com coerência narrativa do possível, a produção tripartida (israelense-germânica e estadunidense) é bela e sensível para além de sugerir eventuais doçuras de atitudes, resistência e perseverança de caracteres.
Parece-me transpirar que possa haver “loucuras” aceitáveis, uma síntese positiva de sofrimentos individuais até nas tragédias genocidas, resultados de personalidades e não de raças, esforços de pessoas e não de etnias.
Transpirou mais: que tal “loucura”, assim aceitável, pudesse ser contagiante, para não dizer apaixonante; uma espécie de justificação da admiração que sentimos pelas pessoas que convivem da melhor forma possível com todos os traumas e prejuízos que uma catástrofe pode gerar - como, p.ex., inspiram-nos respeito e admiração os sobreviventes daqueles eventos de crueldade, que ainda dormem, comem, se encontram, mercam e amam.
Por fim, trouxe também o contrário: os traumas incuráveis dos outros pacientes podem dizer-se resíduos indeléveis na alma.
Mas o filme rematou com o final indiferente à infelicidade: Adam voltou para a pensão da amante (mulher que teria tentado matar no início do filme), depois de comprovar a morte da filha fugitiva dos campos, e depois de se cientificar da cura do menino-cachorro – sua esperança íntima e secreta da própria cura.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

A beldade, o velho e o dinheiro

Ninguém sabia da estonteante esposa do vice-presidente do Brasil.
Marcela Temer é uma mulher jovem, bonita e atraente.
Casou-se há sete anos com um homem cinqüenta anos mais velho que ela. O cara é rico e poderoso!
Mulheres jovens, e principalmente bonitas e atraentes, não faltam nos nossos dias. O exemplar proliferou de um jeito que o vemos em todos os lugares: tevês, bares, trabalhos, ruas, vizinhanças, enfim, em todo lugar que o olho vê tem sempre uma ou duas mulheres assim.
Casamento de interesse não é novidade: estados políticos se configuraram com esse expediente.
O relacionamento sensual por interesse, seja heterossexual ou não, sempre existiu.
O alpinismo social das mulheres - quase uma qualificação profissional que possivelmente algum cronista social emprestou a tais agentes -, também.
O que me leva a escrever é a forma como enxergamos esses encontros: com absoluta incredulidade, ou aceitação oficiosa; uma desaprovação hesitante – o que eu reputo moralmente desastroso nos outros, mas que faria tranquilamente, independente do que pudessem pensar.
Indiferente ao amor romântico, meloso, novelesco, certo mesmo, são as necessidades que todos sentimos de fixar raízes no conforto que o dinheiro pode trazer.  
O amor banal e volúvel é o nome errado da paixão, que como qualquer emoção forte: chega, arrasa, esvanece e quase sempre passa, dando lugar ao próximo.
Mas, um relacionamento por interesse pode ser um tipo de prostituição? Acho que sim. Diferente apenas pelo fato de que em vez de uma descarada notoriedade de muitos parceiros, promove-se a publicidade de apenas um (“o tiro certo”), pela paga do conforto.
É na generalização de todas as aparências que está o prejuízo da decência das pessoas.
Laços inter-raciais, entre excepcionais e “normais”, ricos e pobres, jovens e velhos, sempre suscitarão o sussurro de um maledicente de plantão. Ele dirá: “também! o cara tem grana...”, ou “deu o perfeito golpe do baú...”, ou qualquer coisa que desmereça a relação autêntica e desimpedida.
Desesperamos do amor ou da paixão, que podem existir nesses casos, sim. Embora a freqüência e a indústria fútil de fofocas e celebridades sejam determinadas em desmentir.
Dizer que tais relacionamentos podem ser por interesse, é uma coisa; mas afirmar que sempre são, é uma temeridade!
Se eu fizer isso, corro o risco da imperdoável indelicadeza com, no mínimo, o homem sem posses, maduro e solitário, e com as mulheres em geral.
A esse homem, digo que na velhice não adianta ser experiente, honesto, inteligente, charmoso, seguro, saudável, se não tiver muito dinheiro – sem isso para pegar mulher nova, de nada adiantam os outros atributos; ou você se junta com outro caco, ou morre sozinho.
Talvez porque digam isso de outras maneiras já há algum tempo, tenhamos parte da explicação para o desrespeito com o idoso, e para a irresponsabilidade civil de muitos homens, adolescentes eternos cada vez mais velhos, que se negam a amadurecer no casamento e na vida.
Para as mulheres, sacramentamos sua triste função social: servir aos prazeres varonis da carne em troca do transitório bem-estar sócio-econômico.
Deve ser também por isso que vemos tantas dessas bênçãos nos analistas, ou se entupindo de antidepressivos; amaldiçoando seus casamentos; vendendo-se em puteiros ou vitimadas por psicopatas (famosos ou anônimos), que as cooptam e as descartam - algumas nem envelhecem; morrem em suas mãos.
Digo aos dois: se não enricarem antes de murchar, encerrem a partida antes do apito!
Nada contra quem prefere acreditar na prostituição velada, quase socialmente aceita. Cada um, cada um. Ao contrário, tudo é bom de viver! Afinal, que homem, novo ou velho, não gostaria de ter sempre uma bela e jovem mulher do lado?
Quem, mulher ou homem, não gostaria de nunca passar privações?
Para finalizar, só mais uma coisa: se a beleza, o dinheiro e o sexo fossem tudo, não teriam o tempo e o fim como inimigos!
Fechar com essa de que “a mulher tá com ele só pelo dinheiro”, é matar qualquer esperança de que um dia eu pudesse vir a conquistar uma mulher dessas, sem precisar pagar (por incrível que possa parecer!).
A indelicadeza pode vir a ser usada contra mim mesmo, um dia! Quem sabe?

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Ao doutor Harris (comentando a entrevista)

Doutor Sam Harris, não li seus livros, apenas uma curta entrevista ao sítio da Veja, gentilmente enviada por e-mail, por um colega - Graças a Deus! - muito bem informado.
Vou adiantando que não desejo satanizá-lo ou demonizar as suas ideias – embora seja tentador e até certo ponto muito proveitoso a muitos empresários da fé e fanáticos religiosos, fazê-lo em duelo público e acalorado. Aliás, no intróito da entrevista está dito que vozes já se têm levantado contra sua perspectiva de extinção da religião e renúncia espiritual (ou mental) do Deus da Bíblia.
Não, não é isso o que pretendo. O senhor é jovem e recém doutor, emérito em neurociência. Não fica bem ao mundo do intelecto, que um brasileirinho anônimo, num textinho sonolento destes, sugira sequer que alguém como o senhor poderia estar enganado!
Do que entendi, o senhor... vou chamá-lo de você, caso não se ofenda, pois temos praticamente a mesma idade! -; você ficou tão chocado quanto qualquer outro ser humano da Terra, ao ver a estupidez do atentado ao World Trade Center – o fatídico 11 de setembro.
Somado à pouca influência de cristandade no seu background mais o fascínio das ciências - que confesso: fascina a qualquer um, no mínimo, pela incrível melhoria da qualidade que proporciona na vida terráquea -, especialmente a neurociência, supõe você, são suficientes para gritar contra qualquer adoção de espiritualidade como mentora de moralidade, a qual deve ser deixada órfã de dogmas religiosos para ser estudada, abalizada e postulada pela ciência.
Parece interessante! E parece que não é novo!
Cientistas (e não a ciência), filósofos (e não a filosofia), políticos (e não a política), escritores (e não a literatura), enfim, muitos homens e mulheres já desacreditaram de Deus e das religiões, antes.
Outros tantos, ao contrário, acreditaram tanto, que se esqueceram dos outros homens, como seres individuais com direito a livre arbítrio, pensamentos e expressões livres.
Fundaram ditaduras deístas, fanático-religiosas, ateístas, etc., tanto uns quanto outros.
Por ser cristão, quero evitar a puxada de sardinha para o meu prato! Vou mudar, então, o enfoque.
Parafraseando: “não é certo que a crença religiosa esteja embutida no cérebro humano”, como sugerem experimentos neurológicos, “mas digamos que esteja”...  Você não acha que o esforço de desmontar almas cevadas em culturas e religiões milenares, além de sobre-humano (para não dizer, divino), é um desgaste desnecessário e contraditório aos tais experimentos, que, “digamos”, podem estar certos?
Quase que você escancara sua absoluta intolerância, doutor...  isso me dá medo! Como seria na prática essa conversão ao contrário?
Você não acredita, nem um pouco, que apelando para o bom senso dos homens – tira os “camicases” da roda diplomática, mas tenta um comitê pacífico deles -, em todos os lugares em que se professam espiritualidades díspares, não poderíamos tentar acordos ecumênicos rumo a uma “quimera” de paz?
É uma “quimera”, eu sei, mas parece menos drástico do que reinventar o homem.
Tenha paz! Fique com Deus!  - que “caso exista, doutor” – e eu acredito que sim -, continuará existindo independentemente de acreditarmos Nele.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Extensão e profundidade. A intenção deste blog

A propósito de uma salutar discussão sobre este blog, seu formato e conteúdo, seu propósito e poder de alcance – uma das tantas boas conversas que mantenho com um colega artista plástico e escritor, de enorme sensibilidade, portanto – me vejo começando a refletir sobre extensão e profundidade das intenções.
Encontrei assim momento oportuno e início conveniente para escrever sobre a intenção de quem faz uso desse meio para se expressar (ou não).
É também uma forma de apresentar expressamente a intenção deste blog específico - esta ferramenta do tipo “garrafa com mensagem lançada na vastidão dos oceanos”.
Do blog, penso que ficou clara a intenção ingênua: escrever sem compromisso de vender qualquer ideia ou produto; desamarrado da vigilância da gramática; gratuitamente (por enquanto), mesmo que eventualmente a pouca fecundidade da imaginação e tímida habilidade técnica, os parcos conhecimentos e as poucas experiências se oponham.
Se em algum momento as entrelinhas vierem a sugerir preconceito, acreditem: não foi essa a intenção. Tenho cuidado que não cometerei mais incivilidades do que as faço no dia a dia, involuntariamente.
Não sendo literato, por enquanto não vejo como ganhar dinheiro escrevendo. Para isso, deveria ter maiores profundidade e extensão. Porém é rasa a fonte e curta a lâmina d’água.
Ganho da experiência apenas mais experiência (embora ainda não houvesse quem se dignasse a comentar os escritos).
Nota: creio que alguém pode estar lendo. Obrigado! (Não se sinta obrigado a comentar em razão do comentário que fiz).
Não há público alvo, nem revelações de verdades. Só opiniões e coração despido. Opiniões se alteram e corações se revestem. Melhor que seja assim, pois essa foi a minha intenção: flutuar palavras no ambiente virtual; quem sabe se não ressoará?
Se tencionasse vender algo, certamente teria pesquisado mercados e decidido pela linguagem mais apropriada, na forma, na cor, buscando o impacto de menor risco. Talvez nem quisesse escrever tanto, mais mostrar alguma solução, algum divertimento ou prazer, apontar necessidades (ou criar alguma).
O blog teria começado como diário, e hoje é instrumento eficiente de veiculação de coisas interessantes. OK! Fica como diário para mim.
A tudo precede a pergunta: qual a intenção? A duração do encanto é do tamanho da vulnerabilidade da intenção. Quanto antes se frustra o desejo, mais rápido se estiola a iniciativa.
Pode ser que logo a minha cesse, e fique mais uma sujeira no limbo da rede - como suponho haja milhões de intenções esquecidas, almas penadas que vagueiam com profundidades e extensões outrora relativamente maiores.

domingo, 2 de janeiro de 2011

Luís e eu (2)

Foi do jeito que a gente esperava, Luís. Não falhou na simplicidade da despedida, da mesma maneira como se portou durante o tempo todo: apaixonado e sem afetação.
Emocionado disseste até logo e muito obrigado ao povo brasileiro.
No dia seguinte (ontem), passaste a faixa para a Dilma, a quem fez candidata e atual presidente - a primeira mulher a assumir o maior cargo do país.
À noite, o homem simples que nunca se escondeu atrás de um tipo pomposo e pretensamente erudito de terceiro mundo (a pedir servilmente que o aceitassem nas rodinhas das lideranças mundiais), compareceu à festa do ABC, São Bernando, na frente da sua casa. O lugar onde o personagem político começou.
Valeu, camarada! Obrigado!
Você deixou o cargo com aproximados noventa porcento de aprovação, mas, sobretudo, preencheu de esperança milhões de corações.
Encorajou humildes daqui a sonharem por seus filhos e filhas novamente.
Ao passo que agradeço também desejo, sinceramente, que não te afastes dos meios consultivos ou, se puder, dos centros decisórios e das deliberações do Brasil.
Este blog, em que eu, sem estudos e sem erudição escrevo, foi motivado por três causas: a necessidade de modernizar as relações com filhos internatuas; a vontade de escrever e, pelo que também agradeço, o teu exemplo de que é possível não ter medo de expor a alma se o coração for brando e a intenção for guiada pelo amor.
Deus te abençoe, Luís Inácio!

GRACIAS ANDINAS