sábado, 18 de junho de 2011

Homens agridem mulheres. Parceiros se matam.

“A cada 2 minutos, 5 mulheres são agredidas”, dizia a legenda num tele-noticiário sobre a violência contra o sexo frágil, enquanto apresentava um dorso feminino repleto de vergões produzidos pelo açoite de um monstro, e outras horripilantes imagens nebulosas de rostos feminis inchados; mãos trêmulas; homens cabisbaixos, algemados.
Também alarmou muito a tele-notícia de uma belíssima jovem - uma linda mulher, criatura de dezoito anos - que assassinou por sufocação um homem mais velho num quarto de motel. Ela quis esconder o cadáver, mas, sem sucesso, deixou com o corpo os rastros que levaram ao seu encalço e captura.
Pessoas têm assassinado amantes, e às vezes, o que é mais estranho, ex-companheiros... em motéis?!
Apesar das modernosas relações amoroso-eróticas - teens ou “maduras”, mas sempre irresponsáveis e volúveis -, franca e repetidamente destiladas e reproduzidas das novelas, vê-se pela freqüência da hostilidade, agressão e morte, que os parceiros (às vezes parceiras), não mudaram em relação à sensação de posse do outro.
Quem disse que amar é ser a metade do outro? Ou que devemos cuidar do que é nosso (quando o objeto é uma pessoa)? Ou que se “a coisa” não for propriedade do atual parceiro, de ninguém mais será?
Possivelmente tais enormidades pudessem ter tido um dia, alto e reverente significado [que surtiram grande fertilidade em seus efeitos], num discurso do passado, escuro de inteligência e progresso, recheado de desrespeito pela individualidade. Gentes próximas da escravidão institucional e da força bruta - resquícios ainda presentes no cérebro e na alma ou, quem sabe, no DNA do homem biológico-animal, mas que certamente deve ser contido.
Esse instinto (caso seja um instinto) deve ser barrado ao custo, se necessário, de uma ampla revisão de hábitos, costumes e leis, antes que se torne afinal o maior motivo da falência do casamento e da família, da desconfiança na união perene e sadia, tão necessárias à manutenção da vida social como a conhecemos na maior parte do mundo.
Se é que ele, o instinto, já não tem tido peso suficiente em caminho dessa ruína!
No dias atuais diz e pratica a anomalia quem se mutilou no caminho da vida. Quem deixou alguma parte de si subdesenvolvida, mirrada, atrofiada pela tarefa mal cumprida de aprender a transitar no mundo dos viventes.
Quem usurpou e subverteu a autoridade divina de criar o indivíduo - esse ser na plenitude de suas peculiaridades e percepções: únicas, exclusivas e inamovíveis.
Pessoas-aberração que não conseguiram controlar a monstruosidade e a covardia dentro de si.  Sádicos e desequilibrados em rota de colisão.
Sugiro que a aparente incoerência entre o que se mostra nos enredos de encontros, sexo e desencontros, de trocas fúteis de parceiros, da banalização do amor e do erotismo; e o mundo real, selvagem e egoísta é algo com que devemos nos preocupar muito, agora, profundamente.
Nossos filhos e filhas têm direito ao encontro com a paixão, com o prazer de se relacionar, de trocar idéias e carinhos, de compartilhar descobertas e emoções, sem serem objetificados ou pagarem com a vida a tentativa de ter alegria e prazer em existir.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

O segredo da Ostra

Ficava ali, parada o dia inteiro, da alvorada ao entardecer.
Muitos a criam rezando em silêncio. Mas a cabeça não se movia com afetação, e os gestos eram de abanar moscas ou corrigir os cabelos, ou coçar suavemente a ponta do nariz. Os olhos não alteavam aos céus.
Logo, era mais comum pensarem se tratar de uma mulher louca.
Há uma semana se mudara para a vila, e desde logo, na claridade do dia, repousava sua cadeira de vime no sol e se sentava quieta.
Levantava-se apenas para satisfazer necessidades do corpo, voltando incontinenti, até o fim do dia. Sempre limpa e fresca.
Que lembranças – cogitavam - podia ter tornado uma pessoa tão insociável, aparentemente infeliz? Que desditas?
Seu desassossego bem podia ter sido o coração destruído por algum rapaz. Quem sabe fosse vítima de violência doméstica e hoje, com parentes afins, curtisse ao sol o desgosto de ter nascido.
Fosse (quem sabe?) uma lunática congênita, que seu Ambrósio e dona Firmina trouxeram por misericórdia, recolhida de algum lugar de abandono. Eles eram de coração!
Desconversavam toda vez que a vizinhança enxerida perguntava.
“A moça é parente de Firmina”. Era o máximo que se informava. Qualquer mais era troca de assunto e pigarreio – às vezes muxoxo, findando a prosa.
“Seria alguma concubina de seu Ambrósio? E dona Firmina... Coitada! Coitada nada, se deixa é porque também não tem vergonha!” – cochichavam na missa.
A moça era linda de ver! A escultura trigueira, de cabelo em caracóis e íris castanhas, e cílios que cintilavam umedecidos. Bela forma de fêmea!
Não respondia aos cumprimentos do populacho. Isso começava a desagradar os anciãos, e as senhoras locais se esforçavam para arrefecer os ciúmes dos comentários sobre a boniteza singela da moça.
Com efeito, era formosa e cheirava a flor e relva molhada. A pele e o colo lisos, rijos, sem estrias ou pregas, testificavam sua juventude e podiam dizer-se virginais.
Os moços, em rumo dos canaviais, traçavam novo percurso só para ver a beldade insana.
As moças estavam em pé de guerra com a “Ostra” – assim a chamavam abertamente pelas praças e festejos. Era sua revanche pela impossibilidade de emular com tal rival, que sequer se atrevia a fazer-se requestada pelos solteiros, ou paquerada pelos casados, ou desejada por todos.
O pároco chamou Ambrósio. “Que tens a confessar, irmão?”
- Nada.
Nada mesmo? Saiba que todas as coisas são conhecidas de Deus. Nada fica encoberto aos Seus olhos...
- Não tenho nada para confessar, padre.
Na mercearia, propriedade de Ambrósio, ele se negava ao assunto e já ameaçara fechar a bodega se o tema persistisse. Por ser a única da vila, pararam de assuntar.
Firmina também cessou as costuras e os bolinhos de mandioca que encomendava às comadres, por não ver saída ao entrincheiramento.
A comunidade agora não tinha outro pensar, senão descobrir quem era a “Ostra”, que por existir, incomodava.
Histórias começaram a correr: de uma santa que fazia cura apenas de olhá-la, pela presença, era bastante passar em frente ao seu portão; de um boto que solfejava com voz de menina nos igarapés de Santana; de um anjo que esvoaçava pela cidade durante a noite, espargindo um pó de esperança sobre as casas; de uma bruxa que amaldiçoava as plantações.
Inúmeras histórias.
Certo dia, os jovens canavieiros (em marcha de jornada) não viram a menina pela manhã. Nem a viram as vizinhas das janelas; nem a casa de Ambrósio se abriu naquele dia.
Ele foi embora levando a jovem intrigante, Firmina e os cachorros. Mudaram sem deixar rastros ou bilhetes, nenhum sinal de paradeiro.
Vingou a história que se conta até aos dias de hoje, que por causa de uma ostra que teria sido jogada no mar da capital, seus cultores se tornaram peixes mágicos do mesmo igarapé que o boto cantante, e juntos com o anjo do pó de esperança, combatem a bruxa das más colheitas, garantindo a prosperidade daquele povoado agrícola.

MEMÓRIA 40 – ESCOLA E EDUCAÇÃO

A escola, com freqüência, era o ponto alto dos nossos dias.
Das escolas, os professores em primeiro lugar.
Mas a educação não é coisa exclusiva da escola. Esta serve como intróito à vida de cidadão, como um depositário e transmissor do conhecimento formal das ciências. Porém não é ali que o camarada aprende definitivamente a ser gente.
Confundiu-se num tanto a idéia de que a educação são prédios lotados que parece quase descartada a aceitação de qualquer outra forma de instruir.
Vejo isso no dia a dia das escolas das periferias, quando nos dias de reunião de pais e mestres - em que os primeiros (ou melhor, as primeiras, pois são as mães que pesadamente comparecem) - usam aquela sessão para lavar a roupa suja com os docentes, os quais, por mais que apontem os defeitos morais indefensáveis dos anjinhos, não conseguem demovê-las de sua irresponsável mima excessiva dos filhos.
Não peguei o tempo dos castigos: palmadas e reguadas nas mãos, do chapéu de cone e do canto da sala, dos joelhos nos caroços de feijão. Vi e sofri um pouco de vexação a que fomos submetidos, os garotos da minha época, por recalcitrantes professores.
Diz-se hodiernamente que não se pode fazer nada contra a integridade física e moral do educando. Concordo plenamente. Afinal, a crueldade é irisada.
No entanto, veio somar-se a este diapasão educativo, o desleixo da idéia de que o aluno é um membro co-responsável numa comunidade. Hoje vemos que a agressão aos professores assoma nível alarmante e “bullying” se tornou matéria consagrada a altos estudos, mas contra a qual ninguém se digna a opinar com praticidade.
Lembro que nos espreitavam coordenadores de educação nas escolas públicas. Observavam como aves altaneiras, corrigindo-nos as indelicadezas em todo instante.
Cantávamos o hino nacional diariamente e tínhamos aulas de organização social e política. Vá lá que podiam servir ao interesse da propaganda do governo, mas muito se aprendia sobre o estado de direito!
Esforçávamo-nos para merecer as estrelinhas coloridas de papel alumínio, ou os livros dos concursos internos de leitura e ciências, tudo parte de um sistema meritocrático simples, de prêmios inocentes e castigos simbólicos de grande efeito moral.
Esmerávamo-nos nas lições de casa, na caligrafia, nas notas. Nossos cadernos e livros deviam estar limpos e organizados.
Adultos acompanhavam nosso aprendizado e crescimento.
Os professores tinham sempre razão. Imperava que uma queixa recebida em casa, servisse à investigação de como os pais educavam suas crias.
Ir parar na secretaria era o maior labéu da carreira estudantil. Lá, após cautelosas diligências, sabíamos que os pais seriam comunicados.
A frequência das aulas era minuciosamente levada em conta; a ausência nos tempos letivos era registrada e considerada um componente sócio-matemático de ascensão e promoção do estudante.
Repetíamos desde o primeiro ano. A evasão escolar por repetência é tema mais recente. A progressão continuada não resolveu. Em vez disso, de acordo com o ponto de vista, piorou, pois transformou a cena: quem fica ou quem sai, sabe menos que outrora. Quem continua vai até o limite do fundamental, rareando à medida que os graus sobem e conforme os preços das mensalidades praticadas na rede privada.
Os professores não eram nossos pais, nem tios, nem avós, nem parentes. Eles eram nossos professores: figura acima do bem e do mal, homens e mulheres dignos de honra.
A escolha da profissão era meticulosa, em que pesavam o bem-estar emocional e material. Penso que eram felizes com a escolha.
Tínhamos os membros dos grêmios, dos quais participávamos entusiasticamente como pessoas importantes para melhorar nosso universo.
Certo é que queríamos que isso fosse assim mesmo, espelhávamo-nos nos mais velhos, trabalhadores; afastávamo-nos do mal - em qualquer de suas aparências; líamos histórias em quadrinhos e clássicos da literatura; ouvíamos melodias agradáveis e almejávamos, ao encontrar a garota dos sonhos, a construir uma família para, só assim, sermos respeitados como homens de bem.
Desentendimentos e brigas sempre existiram. O curioso é que não raro encontrávamos amigos entre os contendores.
Raro também era ver fardas e viaturas vigilantes nas cercanias das escolas.
Na época sonhávamos em ser professores, advogados, engenheiros, médicos, ou cursar uma boa escola técnica para sermos excelentes profissionais. As aspirações dos mais velhos eram nossas inspirações.
Penso praticável esse modelo de sonho, baseado na felicidade de estudar e de aprender.
É necessário, entretanto, não desvirtuar o caminho: professor é mestre, aluno é aprendiz, pais são educadores.
A educação começa em casa e ponto final.
Não queiram responsabilizar a docência pelo mau-caratismo dos filhos, isso é responsabilidade do pai e da mãe.
Não é dividindo o tempo com distrações, mantendo os pequerruchos entretidos com televisão ou internet, se desincumbindo da culpa da ausência com premiações desregradas e efusivas demonstrações de afeto, mimos inadequados, inoportunos, que teremos adultos sóbrios, pessoas felizes, cidadãos sérios, amigos entre amigos, irmãos entre irmãos.
Ao contrário, não encorajaremos os meninos e meninas, nunca, a romperem seus casulos de egocentrismo.
Nem tudo eram maravilhas! Os governos não davam materiais e uniformes para o ensino fundamental. As “minorias coloridas” e a maioria pobre não alçavam grandes vôos acadêmicos.
De fato, a evasão era bem mais numerosa e mais cedo.
Sugiro então, um mix da pedagogia do passado com os benefícios legais da isonomia.

domingo, 5 de junho de 2011

A MARCHA DAS VADIAS

A marcha das vadias (ironicamente, claro!), poderia ter se chamado somente a marcha das mulheres - pura e simplesmente.
Trezentas mulheres se reuniram para uma passeata, ontem, 04, na av. Paulista.
Protestavam contra a violência dos homens, relativizada com a alegação de que as mulheres induzem, seduzem ou atraem uma possível e justificada violência, em face do vestuário que ostentam para se sentirem mais atraentes, ou apenas para terem melhor bem-estar. Só isso!
Apoio a iniciativa das mulheres. Não é por que uma mulher usa um decote ou uma minissaia, que um troglodita pode se sentir autorizado a passar dos limites.
Na reportagem do IG de hoje, citou-se o infame chiste de Rafinha Bastos, de que uma mulher feia devia agradecer por ter sido estuprada, e outra grosseira opinião de um policial norte-americano de que as mulheres dão azo aos assédios mais violentos.
Ambos fizeram eco a uma visão ultrapassada de milhões de machistas que insistem em resistir a um código humano de respeito à pessoa, independente de sexo, cor, raça, credo, etc. Uma cafajestada de plantão que resiste em aperfeiçoar-se como ser abençoado, e reconhecer nas mulheres - nossas companheiras de todas as lutas -, uma obra-prima perfeita e digna de honras e excelência de tratamento.
Mas, diante de tantas mudanças - pretensamente avanços da humanidade -, porque estamos ainda carregando este anacronismo comportamental?
A explicação deve ser tema de profundas reflexões, porém pressinto uma defasagem entre educação social e prática de novos costumes.
A mulher deve ficar em estado de vigilância quanto ao bom senso.
Numa matéria que me foi dada a conhecer por um colega, em 19 de maio, sob o título “Roupas estão sexualizando meninas cedo demais?”, as pesquisadoras Samantha Goodin e Sarah Murnen, da Universidade Kenyon, nos Estados Unidos, responderam que sim:
“Segundo a ‘teoria da objetificação’ - ou reificação -, as mulheres das culturas ocidentais são amplamente retratadas e tratadas como objetos do olhar masculino.
Isto leva ao desenvolvimento da auto-objetificação, um processo por meio do qual meninas e mulheres internalizam estas mensagens e veem os seus próprios corpos como objetos a serem avaliados de acordo com normas estreitas - muitas vezes sexualizadas - de atratividade.”
“Tendo em conta os efeitos negativos da auto-objetificação, como a insatisfação corporal, depressão, baixa confiança e baixa auto-estima, Goodin e suas colegas examinaram o papel das roupas das meninas como uma possível influência social que pode contribuir para a auto-objetificação das garotas pré-adolescentes.”
Por aí vai...
Desde cedo, nos meus estreitos círculos, tenho dito a respeito de movimentos e novas regras [ou desregramentos] que se avultam em estandartes de modernidade e liberdade. Mentirinhas amiudadas que escondem intenções muito maléficas.
Num marco de trinta anos, tenho notado que as crianças, os pré e os adolescentes tem sido alvo de bombardeios midiáticos com a intenção de se tornarem cada vez mais prematuramente sexualizados, cujo objetivo primeiro é fazê-los excelentes consumidores precoces.
Assim, pais incautos, seguindo ditos de moda, de propagandas e programas de tevê, têm deixado suas meninas cada vez mais peruas e seus meninos cada vez mais machinhos cobridores.
A sexualidade deixou de ser tema de preocupação e tabu. Isso é bom!
Por outro lado, nenhum discurso eficaz foi criado. Isso é ruim! Porque a sexualidade dos jovens foi entregue à própria sorte, sustentada por uma visão eminentemente consumista, apoiada no tripé inquebrantável: sexo, dinheiro e poder.
Devemos falar sobre sexo com nossas crianças, indicando-lhes a dignidade, o prazer, os riscos, as frustrações, as fantasias e as realidades.
Senão continuaremos tendo, de um lado, o feminino banalizado; de outro, o machismo autorizado.
Ser machista é feio e nada tem a ver com ser macho, camaradas rapazes e homens!
Macho respeita, protege, honra, cuida, acalenta a fêmea.
Machista invade, maltrata, fere e mata. Isso não é são, é doença ou criminalidade. Como crime deve ser severamente punido; como doença deve ser preventivamente tratada.
Enquanto não fizermos isso, assim entregue aos sabores de discursos enviesados, de imagens vulgares que a perversão criativa dos fazedores de “cultura” vendem, o simples caminhar com uma minissaia continuará sendo fato gerador de aviltamento da mulher; e caso de polícia, que às vezes, sob o olhar silente e zombeteiro de alguns agentes da lei, pode ser tratado com importância somenos em face da vestimenta intrigante da vítima.
Então, como ficamos? A mulher pode vestir-se como quiser?
Sim, pode e deve. Mas, acima de qualquer roupa que coloque por fora, seja para causar inveja nas outras, provocar ciúmes dos amantes, seduzir novos parceiros, ou (propugnado no começo) apenas para se sentir bem, precisa antes se revestir por dentro de bom-senso, amor-próprio, auto-estima e respeito por si mesma, tudo de forma equilibrada.
Dos homens que adotam a postura machista do assédio grosseiro e atitudes indelicadas, quando não autênticos abusos, tenho a dizer: BABACAS!
Vocês não sabem que a mulher é uma pessoa com desejos e sentimentos? Que é ela quem se permite ser amada? Que, se ela não quiser, não rola? Que quem escolhe a parceria é ela? Que ela, muitas vezes, não quer sexo, mas apenas sensualidade? Que ela tem sentido estético diferente do nosso? Que a sensibilidade da mulher é elevada à enésima potência da nossa? Que com gestos e falas elegantes também se conquista, e com mais eficiência?
Se não sabia, é isso aí. Pense sobre isso com carinho, amigo, e comece, senão a reverenciar, a tratar com mais respeito as mulheres: nossas filhas, mães, amantes, esposas e amigas.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

TRAMAS in JUSTIÇAS

      O meirinho trazia sob o olhar aquilino, algemado, o velho bandido – na juventude, homem de maus bofes que estuprara, roubara, assassinara; enfim, fez coisas e cometeu atrocidades que fariam o Cabeleira Zé Gomes parecer uma criança malcriada.
      Postado o maléfico ancião na banqueta dos réus, quem via sua silhueta de imediato, através dos longos pêlos brancos difusos no rosto, e das sobrancelhas que empanavam os olhos satânicos; quem fitava a figura perdida nos trapos penitenciários, atrás de rugas, cicatrizes e escoriações em sangue, mal se continha do ímpeto de libertar incontinenti o vovozinho, apesar dos crimes que perpetrou.
     Cinco anos decorrera desde sua prisão no sertão mineiro, obtida tão somente pelos ardis da mente engenhosa do inspetor de polícia da Guanabara, posteriormente alçado a chefe de polícia de estado, homem da ciência investigativa – aliás, ao que devia sua tão prestigiosa posição.
       Contava o velho malfeitor cinquenta e alguns anos apenas, mas à vista de tão pouca energia residual no corpo arruinado pela promiscuidade, resolvera aposentar-se da barbárie, mentindo ser outro lixo humano das ruas daquela promissora cidade provinciana.
      Iam os dias de esmola garantindo sua farsa, para bem esconder a verdade do tesouro em jóias e dinheiros que amealhou ao longo da profissão de perversidade.
     As pessoas sentiam um dó sem semelhança! Conquanto os olhos do velho chamejassem a maldade, atribuíam ingenuamente a uma possível vida de sevícias que o coitado teria vivido.
     Passeava, portanto, tranquilamente na sua cidade durante o dia. À noite cabia-lhe vigiar as arcas dos tesouros: uma, que trancafiara no mais fundo da garganta duma extinta mina de carvão, três léguas da cidade; e outra, de paradeiro até hoje ignorado.
       Seus planos iam mais adiante: a poeira assentava; pegava o primeiro vapor e... Zás! Fugia do país.
     O recém chegado inspetor tinha o propósito de afixar os éditos da busca do malvado nas cepas de iluminação pública – o que, aliás, vinha fazendo desde que chegou da Europa, começando pelo sul. Tinha pouca esperança de encontrá-lo nas costas, e por isso iniciara sua implacável caçada nos interiores.
       Mal o homem da justiça martelou o primeiro cartaz, a poucos metros, um famigerado (que não entendia o perigo, vez que o retrato conservava alguém viril e moço demais, impedindo qualquer sombra verossímil da identificação), rosnava enquanto se aproximava, com uma canequinha suja e pestilenta:
       - Esmola para um disinfeliz, que mora nas ruas desse mundão de Deus, bom homem?
       - Não.
       Insistente, para melhor configurar o novo ofício: “Pode ser moeda, qualquer moedinha, uma esmola, pelo amor de Deus!”.
        - Não. – Negativa fleumática, displicente.
     O homem de polícia tinha administrado suas emoções ao ponto de não se condoer com nada, nem ninguém. Ademais, a estratégia perfeita – aprendera com os ares internacionais – era desesperar as pessoas. A priori (e sem exceção), todos são criminosos potenciais. Mais: todos são culpados até que provem a inocência em juízo, ou até que apreendam o criminoso confesso.
        - Nem uma moedinha, doutor? Nem um trocadinho?
        Os olhos do meliante transpiraram a revolta e vingança dos desvalidos - objeto dileto de humilhação dos agentes da lei e da política. Claro era também, que a comichão de avançar ao pescoço do homem lhe apetecia pelo prazer de matar.
        Era um psicopata. Quando assim diagnosticaram sob palavra tão empoladamente repetida em diversos comícios, ele adorou tanto, que adotou essa marca nos bilhetes que passou a deixar nos últimos crimes.
       Por não saber escrever, desenhava toscamente uma cabeça quadripartida: no primeiro quadrado uma cruz; no segundo, três moedas; no seguinte, um monte de cobrinhas emaranhadas de bocas abertas. No último quadrinho, um cavalinho de brinquedo. Julgava assim representar a terminologia que ouvira.
         Deixava ostensivo o bilhete, sobre o cadáver mais próximo da porta dos fundos.
       - Imundo! Não vê que devo encalço a esse foragido – divisou, virando-se, o perfil do pedinte: macilento, claudicante, pele abrasada; e os olhos...? Não eram olhos naturais de uma pessoa digna de humanidade, não.
      Discretamente bateu levemente a bengala duas vezes na aba de seu chapéu coco. Sutil, um clarão espocou quase imperceptível ao longe.
       - Agora, deixe-me, pois devo rodar cada metro desta cidade. Não me importune, ou o prenderei por atrapalhar as diligências do caso. Mas não deixe a cidade. Ouviu?
         E assim rechaçou o malcheiroso e fingido bandido.
        Na alva do dia seguinte, o comboio de carros da comarca, flanqueados pelos da federação, cortejava pela cidade enquanto no megafone fanhoso da praça da matriz a voz trovejava: “Cidadãos! Graças ao trabalho do estado maior de polícia e auxílio desta força local, foi aprisionado na alvorada, o bandido mais perigoso do século: o Degolador.”
       No tribunal, cinco anos depois, o meirinho com toda reverência, indicou o assento de depoente ao ilustre policial, a quem a impressa e o público esperavam o pronunciamento sobre o impressionante feito:
     “Meritíssimo. Jurados. Senhores. A captura do réu foi resultado de uma longa e meticulosamente elaborada investigação, amparada pela tecnologia e estudos desenvolvidos para o benefício da lei e da ordem. A legitimidade e adequação dos procedimentos e aparelhos utilizados, assim como as parametrizações ergométricas, biológicas, psicológicas, etc., bases para este trabalho, são patentes aos senhores no dossiê em poder desta corte.”
          - Protesto! Meritíssimo, as provas...
          - Negado. – peremptório, o juiz: “Continue doutor inspetor chefe geral de polícia, sim?”
        “Como dizia: homens equipados com as mais potentes lentes de aumento foram espalhados por todo perímetro de sorte a cobrir a visualização integral da cidade. Tais homens foram intensamente treinados nas artes gráficas, desenho, pintura e fotografia – esta, aliás, cujas câmaras são providas de objetivas importadas do leste, para garantir a aproximação de até mil vezes o tamanho do foco...”
           - Protesto, protesto, protesto! – desesperava-se o promotor.
           “É negado protestar. Prenda ele, juiz...” - Gritava a multidão.
           - Negado. Prossiga. – conduziu o togado.
           Não deu tempo. O promotor arrancou o dossiê das mãos dos jurados, espalhou fotos e relatos no ar e inviabilizou o silêncio.
          “Vejam senhores e senhoras. Olhem estes rabiscos. Notem a falta de coerência entre os pareceres; a falta de nitidez das imagens; a incompreensão caligráfica do amontoado de anacolutos sem sentido.” Gradualmente o burburinho foi dando lugar ao espanto.
           Antes que a guarda imobilizasse o defensor, o réu saltou sobre o chefe geral de polícia, enlaçando-o entre as pernas:
           - Vamos canalha! Diga a todos como me pegou... Vamos... Diga se não te divido ao meio, seu patife!
Silêncio expectante. O inspetor:
           - Foi sorte...
           - Mais alto, seu cão sarnento!
           - Foi sorte... – gritou o doutor policial.
           Assim preso nas patolas do bandido, ele confessou:
           “Eu não agüentava mais a pressão dos superiores... do público, da imprensa... da minha mãe...”
          - Vamos, continue seu filho de uma cadela! – Mesmo naquelas circunstâncias inusitadas, as mulheres coraram.
         “Localizamos o tesouro nas minas de carvão. Sem novidade! Outros tantos eu havia encontrado em outras cidades. Então, sem esperança de por fim a este inferno, muito desesperado, abandonei os métodos acadêmicos e decidi usar outros meios:
Cometi um crime à altura do procurado – com a precisão de seu modus operandi -, e assim, pude sediar-me na cidade. Depois, prendi cada miserável dali. Obriguei-os a confessar a posse do tesouro e o recente crime... Alguns morreram nos interrogatórios. Muitos, notando o sumiço de colegas, fugiram. A cidade ficou sem vagabundo ou andarilho. Aí, lembrei-me deste – fixou nos olhos do capturador... Lembrei-me do encontro, sua negação em ser preso (a primeira coisa que um homem gostaria, no estado que estavam estes desgraçados, é de morrer ou ser preso – ao menos teria alguma liberdade, ou qualquer refeição.
Interrogamo-lo por três noites. Ele não confessou.”
           - Fale maldito!
          “Ele resistiu aos ferimentos, e, como não morreu e não tínhamos outro -, trouxemos à barra da justiça, depois de forjar sua assinatura maldita numa falsa declaração de confissão.”
           Depois disso, novas audiências aconteceram; o julgamento terminou.
           Degolador foi condenado à morte.
           O arguto inspetor pavoneia-se nos encontros sociais e está no terceiro mandato de intendente geral da polícia secreta.
           O mendigo continua preso.

GRACIAS ANDINAS