quinta-feira, 24 de novembro de 2011

CRÔNICAS DOS COVEIROS DO CEMITÉRIO VERDE - XVII - AMOR ALÉM E ATRÁS DOS TÚMULOS

Tantos foram os casos tidos à luz do dia, à claridade da tarde, na boca da noite e na penumbra da madrugada que não os poderia contar nem dizer.
Tanto dentro como fora daquele quadrilátero santificado, continuavam insufocáveis os desejos da carne, a luxúria - o sexo é algo iniludível.
A Necrópole tinha tantos hectares e tantos eram os seus meandros, aclives, declives, edificações, becos, ruelas e recônditos convidativos, que surgiam, amiudada e repentinamente, pessoas transando ou esfregando-se numa brecha qualquer.
Aliás, por vigilância ostensiva, observar e seguir casais suspeitos de anelos libidinosos constituía não uma atribuição tácita, mas sim uma imposição do alto comando da confederação de cemitérios.
A natureza é caprichosa e suprimir o instinto oferece à vezes lamentáveis subterfúgios.
Como da vez em que um casal fora visto em vias de praticar o coito sobre uma campa. Estava deserto, certificaram-se de que nenhum bisbilhoteiro iria inibi-los.
A displicência da certificação foi o resultado da pressa: não viram um curioso. Imperceptível, Neguinho-Buiú espreitava de cima de um frontão aquela cena excitante, torcendo para que o macho sadicamente arrancasse gemidos da jovenzinha. Apertava e massageava o pênis túrgido sob as calças, esperando o evento.
Como demorasse muito, Neguinho-Buiú em expectativa silenciosa, deixou a atalaia em busca de cúmplices, para formarem fila de gargarejo, supondo assim afugentar qualquer possível sentido mórbido daquele seu voyeurismo.
Cria que acompanhado estaria melhor que sozinho, e uma testemunha conviria à reabilitação da sua honra, perdida por contar continuamente façanhas impossíveis ao seu porte e incompatíveis com seus recursos.
Voltou dez minutos depois com um colega do bar do Peralta. Tarde demais! Os amantes tinham partido sem deixar sinal algum. Ainda o procuraram num raio de trezentos metros e nada encontraram.
Neguinho-Buiú ficou decepcionado, mas de tal maneira excitado... A cena pré copular não lhe saía da cabeça. Tomou banho de costas para os colegas, envergonhado da ereção.
Durante a semana não pensava em outra coisa. Obsessivamente passeava pelas partes mais preenchidas de árvores e jazigos na expectativa de flagrar outro casal arrojado em deleites. Não encontrou.
Estava na época de campanha eleitoral e umas meninas distribuíam santinhos perto dos portões.
Neguinho-Buiú, Grandão e Burquinha varriam aquela zona e as viram: “E aí, tem jeito minazinha? Hoje é sábado, sabe como é, né? Nóis tamo aqui e vocês aí... Pá... Não tão a fim de tirar um sarrinho não, heim?” – arriscou despretensiosamente o Grandão. Deu certo! As meninas se aproximaram, bateram um papo rápido e em poucos minutos estavam dentro do cemitério duas delas. Burquinha bateu em retirada, pois nenhuma moça lhe acendeu o apetite.
Na verdade ele condenava o adultério, cuja dor infligida ao parceiro sabia como ninguém.
Os dois casais caminharam solitariamente pelo cemitério, conversando e rindo. Parecia que Neguinho-Buiú saciaria finalmente sua sede de um corpo de mulher.
Fez então um sinal de parada, propôs que cada casal buscasse um caminho e se encontrassem numa confluência de ruas estreitas, algum tempo depois do gozo.
Só apareceram decorridas três horas, cada qual com um sorriso malicioso. Neguinho-Buiú, pleno de contentamento não guardava a ansiedade de contar a todos o seu desempenho sexual e como agira viril e criativamente.
Assim o fez, contou para todos quantos pôde, de noite na lanchonete do Tonho. Esfuziante, disparou tudo e um pouco mais. Minto para dizer em eufemismo: entre as goladas de vodka o pretinho soltou cada enormidade cabeluda!
Após a narração, sombreava de dúvida o olhar dos ouvintes, pois, como apontei antes, Neguinho-Buiú definitivamente não encarnava a credibilidade. “Será que ele fez isto mesmo? Será que ao menos ele trepou com a fulana?”
A confirmação veio em três dias - para você leitor, porque os espectadores do bar terão envelhecido com a dúvida: Neguinho-Buiú sentia um prurido incessante na genitália e o pau chamejava urina. Estava com blenorragia.
Vexado que ficou, fez o tratamento às escondidas dos colegas, à base de injeções e beberagens. Poderia ter sido pior, uma doença fatal, e aí não haveria injeção ou comprimido, por enquanto, que desse jeito.

sábado, 19 de novembro de 2011

Como posso cooperar para um mundo melhor em 2012?

Pensando bem: longe de serem façanhas ou barreiras intransponíveis, ou ações de honra e benemerência; ao contrário, são singelas as inúmeras ações com as quais eu posso contribuir para um mundo melhor em 2012!
Atitudes tão aparentemente inexpressivas para a complexidade do mundo – talvez por isso de aparência démodé, sem o gozo da admiração; despercebidas do olhar pretensioso e moderno.
Medidas simplórias que vão de ceder lugar ao mais velho, ou vez à gestante; ou fazer a lição de casa com os filhos, até buscar iluminação espiritual ou uma nobre causa pública.
Mas uma coisa, no entanto, chama muito minha atenção. Está à míngua.
Tudo que existe é por causa de pessoas, e elas são diferentes em cultura, origem, credo, cor, gênero e filosofias de escolha.
A pessoa míngua sufocada nas camadas de cidadão, consumidor e peça dispensável do maquinismo social.
Posso cooperar para um mundo melhor em 2012, então, respeitando a diversidade das pessoas.
Despojando-me dos ódios, dos rancores, das mágoas nascidas de mal entendidos e dos ruídos (muitos ruídos) de comunicações mal articuladas.
Livrando-me das raivas, das aversões, das antipatias, dos preconceitos desbotados que dormem na minha mente, sem razão ou substância.
Permitindo-me liberar e receber perdão.
Refletindo-me no outro, nas suas necessidades, nos seus anseios, nas suas angústias.
Estudando com afinco para que as pessoas tenham qualidade de vida com meus aprendizados.
Trabalhando com ardor para que as pessoas possam comer do melhor fruto que eu plantar.
Rechaçando com veemência qualquer jogo de corrupção - ganho mesquinho de poucos mal evoluídos por vez, enquanto muitas pessoas esperam o melhor comportamento, lícito e justo, para evoluírem nas suas trajetórias.
Tratando bem as crianças, os jovens, velhos, homens e mulheres: o esteio do futuro, a herança da cultura, a seiva da vida!
Participando de uma enorme e contagiante corrente do bem: auxílio mútuo e compreensão em tudo que puder; em tudo que eu fizer.
Meus andares sejam macios, minhas ações, bons frutos; minha fala, fértil; meu pensamento, puro!
Como posso cooperar com um mundo melhor em 2012? É simples: RESPEITANDO AS PESSOAS.
Respeitando e continuando em respeitar, contribuirei para um mundo melhor também em 2013, 2014, enfim, enquanto o sempre existir.

CRÔNICAS DOS COVEIROS DO CEMITÉRIO VERDE - CAPÍTULO XVI - A DECISÃO DE PORCA

Dia nublado de um frio incômodo de inverno, com o sol arriscando uma espiadela pelos interstícios do nevoeiro.
O Porca chegava esbaforido, atrasado e resoluto: “Quero ir embora daqui. Quero minha transferência para o Cemitério Azul!.” Falou decidido ao administrador - um sujeito demagogo que estava no ramo há décadas.
Iniciara sua gestão do cemitério há duas semanas em substituição à Divina.
“Quero ir embora agora. Já tive no Cemitério Azul e o administrador de lá disse que por ele tá tudo bem e que já tem um funcionário pra fazer a permuta comigo.” Considerou peremptoriamente o Porca.
O politiqueiro, conhecendo os relatos do encarregado que atestavam a importância funcional do Porca (sabia inclusive da sua intenção de ir embora em função do amigo Miguelito, que o deixara para encontrar melhor clima de trabalho), por alguns segundos em silêncio e de memória, avaliou a enquete que fizera entre os colegas do solicitante:
- Mas Lúcio Walter, você me pegou de surpresa – era afetada a gesticulação do administrador. “Eu não estou preparado para abrir mão de nenhum funcionário, e pelo que soube de você, menos ainda. Pondere um pouco. Você tem férias vencidas? Quer alguns dias para descansar... Ou pensar?”
“Quem sabe não são problemas que você tenha pendentes – continuou -que deva tirar alguns dias para resolver, não é? Depois você volta com a cabeça mais fresca, heim!, que tal?!”
- Não. Eu não quero é ficar mais aqui. Tô muito decepcionado com alguns colegas; tenho férias vencidas sim e os antigos administradores não me deixaram sair. Meu pai está doente lá em Nova Jerimum; meus filhos ficaram doentes nesses tempos agora, e... Eu não quero mais ficar. Se o senhor não me transferir... Eu não sei não...
O chefe tentou demovê-lo em vão. Pediu uma semana para decidir, mas o sepultador já estava decidido e o “não sei não” era ameaçador e irredutível.
Sua idéia: atrasar diariamente, trabalhar com morosidade e sustentar-se com cachaça até conseguir se mudar.
Não tendo ouvido a aprovação imediata, esperou dias. Não foi procurado para o retorno da solicitação. Porca não teve jeito: deu início ao “eu não sei não”.
O encarregado, que o conhecia de longa data, sabia da persistência dele, sabia que era irremediavelmente opinioso e iria fazer o quê fosse necessário para se transferir.
Uma semana depois, a resposta positiva tornou a cor à pele e repôs o sorriso na cara do coveiro. Era todo festa! Despediu-se dos colegas, dos desafetos, do Tonho do bar, dos logradouros, não se esquecendo de acenar para os túmulos e para um ninho de pardais que transladara para um galho mais alto, para salvá-lo dos gatos e, principalmente, das pedras da molecada.
Em sua saída, lembrava um retirante com sua trouxa nas costas, o violão a tiracolo e uma sutil melancolia, não fosse a certeza de encontrar conforto espiritual e alento ao lado de seu inseparável amigo.
No limítrofe do Cemitério Verde, Porca estacou, virou e espichou o pescoço, lá estava a cova 15655-A da quadra 35. Retrocedeu pelo atalho e aos pés da sepultura murmurou: “A senhora me desculpe e pede desculpa também para o seu marido, mas eu preciso ir. Quando dé eu venho visitar a senhora”.
Despediu-se da falecida esposa daquele seu colega velho dos finais de semana, esquecendo-se que ele jazia ao lado de sua amada mulher.
Só lembrou a morte daquele homem duas horas na frente, quando abraçava efusivamente o Miguelito.

sábado, 5 de novembro de 2011

CRÔNICAS DOS COVEIROS DO CEMITÉRIO VERDE - XV - PAIXÃO RECOLHIDA

Era um fim de junho, data marcada para uma partida de futebol – final de algum campeonato, provavelmente da copa do mundo a julgar pelo indizível entusiasmo e a euforia.
Sei lá! Mas era interessante a quantidade de torcedores que reunia o time adversário em todo país. Uma contradição ao que se dizia tratar de uma rivalidade histórica, arraigada, cuja motivação se perdeu na memória das gerações mais recentes para tornar-se padrão sem fundamento – ouviam-se, até nas televisões, galhofas sobre seus sotaque e cores oficiais.    
Por essas épocas não só os coveiros, mas todo o povo parecia estar tomado de contagiante excitação, e um torpor causava o esquecimento dos pungentes problemas que viviam.
Era rediviva a frouxa idéia de nacionalidade, a tola ufania patriótica esquecida nos quadriênios que antecediam ao certame esportivo, escamoteada pela xenofilia e esnobismo - típicos de uma cultura servil.
O retardatário, apesar de residir longe, levou um aparelho televisor para os companheiros assistirem à decisão.
Torciam freneticamente para seu grandioso time, que levava já a vantagem de dois pontos no escore. Alguns, no entanto, tomavam as dores do antagonista, talvez porque, de alguma forma a hostilidade com que torciam os outros lhes lembrava como foram recebidos na cidade, quando abandonaram o chão de suas terras.
Chovia um pé d’água!
Quando o jogo estava no auge da empolgação, raios e trovões estrugiram transformadores de energia da rua, fuzilando a alegria dos espectadores.
Ficaram desapontados. Mas o dia continuava claro, embora um céu pejado de nuvens.
Restava o baralho, outro brinquedo das horas de recreação quando encerravam os trabalhos. Quatro iniciaram uma rodada de pife.
Os evangélicos reuniram-se do lado de fora para comungarem das Escrituras; outros três isolaram-se para contratarem um serviço “impróprio”; Grandão e Neguinho-Buiú confabulavam sobre as últimas ações de justiceiros do bairro.
O resto se espalhou sem vestígios, voltando mais tarde para o banho e as despedidas.
Um dos jogadores de baralho fitava as cartas, com intensa tristeza nos olhos, esquecendo de depor a mão. Os companheiros esperavam, considerando que fosse análise demorada para uma cartada sumária.
Por fim a pressão: “Como é, vai jogar? Tá embaçado este teu jogo, heim! Camarada! Ah!...” – emprestando o jeito da nordestina Divina.
- Sabe rapaziada, não quero mais jogar. Vou deitar um pouco. - disse o tristonho.
- Mas por quê? Óia aqui, seu jogo tava bom pra caralho!
- Não quero cara! Joga vocês.
- Ih! Ó o cara meu! – virando-se o zombador – Que foi meu, cê brigou com a mulher? Tá com dor na piriquita?
Eis a deixa para o desabafo. “Pior cara! Ela foi embora ontem de noite. Disse que eu não gostava mais dela, que era incorrigível com a mulherada, briguento, boca suja, preguiçoso... e o diabo!”
Desatou num choro tão sentido que os colegas não puderem caçoar.
Entre soluços, lágrimas e catarro, continuou torrencialmente suas lamúrias: “O pior é que eu fiz a descoberta que gosto muito daquela desgraçada! Tá certa que andei gastando um dinheiro com uma vagabunda, mas acabou. Faz tempo que acabou. Eu trepava com a pilantra, mais nada. Ah!, a bebida? Concordo que eu tomo uns aperitivo todo o dia e uma cachacinha para as refeições... Às vezes exagerei mas não faço nada de errado.”
Repentinamente, em transe, balbuciou surdamente:

Luxurioso,
Assaltante de si mesmo.
Réu e executor a serviço da inconsciência.
És louco (são às vezes).
Resistes à infelicidade?
           Truculento: briga no tráfego dos corpos,
 Bate na mãe, cospe no pai, chuta irmãos...
Você é reflexo da Necrópole
 - grama, concreto, tijolo e aço;
Carnes apodrecidas nos subsolos.
Tentáculo implacável a corroer!
Digo a ti e tudo também te diz: és bom e tens destino!
O mal não te habita, mas te frequenta.
Estás em repouso, ele tira num puxão.
Vai-se a condição. Te deixa vazio.
Não mais consorte, ou pai,
Nem aquele velho
Bêbado da alegria anciã.
Indolente. Indecente. Inocente!
Um homem. Um simples homem. Eis o homem!

- Sou homem... Sou um bom homem, porra! Por que ela me abandonou? Me dá minha roupa, Burquinha. Vou buscar minha mulher de volta. Ela vai ver o coveirinho apaixonado, ahh se vai!!! Pro Zé, fala pra aquele filha da puta deixar meu dinheiro da caixinha com você Macarrão; amanhã eu pego. Ele já me enrolou uma vez... Confere o que deu no plantão antes, porque com ele eu não quero papo, falou?
- Tá bom meu, eu guardo. Mas daonde cê tirou isso que cê disse? – Hesitou Macarrão, agarrado ao grupo apavorado - posto que soubessem da mediunidade do Romeu, essa teria sido a primeira vez que o viram incorporado.
- Sei lá cara! Saiu... Fui... Tchau! – E saiu, disparado, aos berros: “Eu te amo sua filha da puta!”

GRACIAS ANDINAS