sábado, 14 de janeiro de 2012

CRÔNICAS DOS COVEIROS DO CEMITÉRIO VERDE - CAPÍTULO XIX - ESTRANHA APARIÇÃO

Quinta-Feira Santa, feriado, dia normal para tanta gente.
Os sepultadores estavam a postos no plantão de sepultamentos e exumações desde cedo. Contavam cinco homens naquele dia enfadonho, e quase meio-dia não haviam enterrado ninguém, nem tirado nenhum corpo do repouso tumular. O dia passava lento e soturno... Enfadonho!
Sem atividade fica mais difícil sofrer a passagem do tempo. Então dois iniciaram um carteado; um evangélico contabilizava as contas do seu orçamento doméstico; outro fazia hora na casinha da administração, e Everaldo passeava incansável pela cidadela mortuária.
Era um senhor às portas dos sessenta aniversários, o repolhudo Everaldo. Tinha olhos injetados, embotados de experiência e enfaro, a pele ressequida pelo sol e pelo álcool, e um andar que era só seu – um pouco Chaplin, um pouco Mazzaroppe, mas fundamentalmente seu -; era mais uma personagem cômica do que um sepultador.
Do tempo que é sepultador sepultou-se duas vezes em uma clínica para tortos do juízo, para tratamentos psiquiátricos.
Apresentava ainda alguma debilidade de dicção - má articulação de palavras com “x” e ‘s” -, defeito e hábito consequentes do longo período de libações de cachaça, aproximadamente toda a vida.
Malgrado seu esforço de aparentar firmeza e saúde, sua idade era penalizada em mais dez anos, dado ao amarelo de sua esclerótica e suas cãs volumosas.
Era hilário seu tipo e não detinha condições físicas suficientes para cumprir todas as funções que o cargo pedia. Era lento, mas era terno e velho - o que lhe rendia a isenção deliberada pelos colegas, dos esforços físicos e mentais.
Não obstante, participava igualmente da repartição das caixinhas, sem discriminação.
Sendo assim, era uma espécie de apoio para o plantão, o carregador dos materiais, baldes e ferramentas.
Bem, enquanto caminhava, lembrava do recente casamento da filha grávida com um maloqueiro local, para os quais tinha de levar mistura para a janta. Lembrava dos tempos em que começava sua vida funerária e das peripécias porque passou e que estava apenas a um ano da aposentadoria.
Lembrava das inúmeras namoradas, dos amigos que já partiram, dos colegas do presente, temia o futuro...
Andando absorto nas lembranças, chegou ao cruzeiro de cuja limpeza era o responsável. Aproximou-se e visualizou um volume vermelho que fulgia diferentemente a cada passo seu. Chegou mais perto e constatou: era um enorme coração de animal, talvez boi... Não teve certeza imediatamente.
Já vira tantas vezes aves mortas, entranhas de bichos, animais mutilados e corações inumanos, mas aquele tinha algo diferente.
No dia anterior não estava lá. Hoje está. Não recende cheiro algum e brilha muito intensamente. Everaldo não quis ocupar-se com investigações trabalhosas e tornou pachorrento para a sua lenta mesmice.
Meia hora depois estava a passar outra vez pelo cruzeiro e não vislumbrava à média distância o órgão vital que tanto lhe chamara a atenção. Atribuiu de primeiro à idade das vistas, aproximou-se bem e não viu mais o coração. Ele desapareceu... “quem tirou daqui se sou eu que faço a limpeza dessa merda?”, pensou enquanto conferia que só o coração tinha sumido.
Aproximados sete metros, na esquina de um jazigo alto, uma figura assombrosa chamava para si a atenção de Everaldo.
Era imagem alta, de mãos e cabeça enfeixadas, vestindo uma enorme túnica preta atravessada na diagonal por uma larga tira vermelha cintilante e capuz longo ligado a uma capa marrom.
A figura tirou o rebuço e apresentou um comprido e pontiagudo chifre, do lado esquerdo, no alto da cabeça.
Para incitar a perseguição de Everaldo tomou do enorme coração numa das mãos e com a outra segurava acintosamente as coisas genitais, macaqueando.
Bramia ferozmente a criatura e apontava para o sepultador o coração reluzente, que pulsava na segurança de sua garra.
Atônito com a visão, o sepultador não sabia o que fazer. Suas pernas travaram, seu coração disparou. Ficou assustado e com medo. Robótico, caminhou insensível para a aparição, que se ocultara atrás de um jazigo alto para reaparecer num outro ponto, nas costas de Everaldo.
Tiritando, ele correu sua maior velocidade para os colegas na parte leste em busca de socorro, que o avistaram ladeira abaixo, trôpego.
Contou fragmentadamente o acontecido e se abalaram todos para o local. Imaginaram que se tratasse de alguém zombando da ingenuidade do amigo. Espalharam-se para surpreender o malandro.
Cansados de procurarem o macabro zombeteiro, sentaram-se no cruzeiro.
O evangélico Carlitos orava cabisbaixo contra o demônio e suas tentações quando notou o reflexo vermelho de um objeto grande, adiante de um turíbulo – que além de incenso comportava dois dentes animais postos por algum pagão.
Pediu a análise dos companheiros: era um pacote de pipocas embrulhado em papel laminado vermelho. Não existia nenhuma aparição.
Everaldo teria bebido? Ou tivera uma recaída? Perguntavam-se no silêncio dos entreolhares.
Como não poupavam ninguém, Everaldo foi motivo de uma troça coletiva daí por diante. Quase todos, quando o queriam irritado se referiam ao episódio ou ditavam os versinhos: “coração preto, vermelho e brilhante / vinde a mim que eu corro num instante”.
Everaldo voltou a divisar a imagem ainda algumas vezes, mas decidiu por conta, se consultar com o psiquiatra, velho conhecido que não via há anos.
Resolveram alojá-lo terceira vez na mesma clínica e sua internação deu-se após o massacre. [Durante o rápido combate, Everaldo despejou um defunto por cima dos corpos fuzilados e instalou-se no ataúde em seu lugar. Descobriram-no na manhã seguinte com a indiscutível falta de siso. Preferiram interná-lo a envolvê-lo em episódios judiciais].
Estive internada lá no mesmo tempo, mas fiquei só seis meses. Ele me foi adorável companhia, esse coveiro!
É ele o velho sobrevivente das circunstâncias trágicas, a que me referi no começo.

GRACIAS ANDINAS