domingo, 11 de dezembro de 2011

CRÔNICAS DOS COVEIROS DO CEMITÉRIO VERDE - XVIII - VÍTIMAS DO PRAZER

A peste negra medieval e a tuberculose romântica fizerem suas milhares de vítimas. Indiferentes e cruéis, como tantas epidemias e microorganismos inéditos, até que a ciência, pela permissão de Deus, as dominou.
Mas ainda assim continuam à espreita, emboscando desavisados, em que possam operar o definhamento e engolfar na morte.
Assim também é com muitas doenças sexualmente transmissíveis. Ouviram?! Jovens de todas as idades?
Para falar de uma, a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida – AIDS é de uma atrocidade incomensurável! Involuntariamente adquirida num arrebatamento de prazer ou no descuido da higiene, só a prevenção pode detê-la por enquanto...
E todo cuidado é pouquíssimo! Ouviram?! Jovens de todas as idades? (Tive que reprisar a perguntar, porque há adolescentes de todas as idades, quarenta, cinqüenta, sessenta anos...)
Num momento inopinado, em que a libido ou a fuga psicotrópica, ou a imprudência desvanecem a atenção, ela ataca implacável, impiamente.
Perto do Natal, uma vistosa jovem caminhava pelas ruas do cemitério com passos contados e um pedaço de papel na mão, no qual trazia o endereço da Necrópole e coordenadas do jazigo de seus avôs. Avistou um grupo de sepultadores ali perto, e foi ter com eles:
- Por favor, vocês podem-me dizer como é que eu faço pra chegar nesse túmulo aqui ó? – Era bem jovem, atraente, loura, esguia e bonita.
- Ah! Sim. Eu levo a senhora. Ou senhorita? – respondeu Macarrão sendo fisicamente atalhado pelo Retardatário que instou em levar a moça.
Cada qual com seus interesses: o Retardatário queria contratar algum possível trabalho “impróprio”, e o outro desfrutar da exuberância da dona formosa.
Macarrão venceu a pendenga, discretamente, sussurrando ao ouvido do outro, enquanto puxava a manga da camisa, que ele devia dinheiro da partilha de uma caixinha misteriosamente desaparecida há algumas semanas – “Cê vai querer zuar comigo de novo Retardário?”.
Macarrão levou a moça à atual “casa” dos avôs.
Diante do sepulcro enegrecido de sujeira e de tempo, com o mato rasgando as fendas no cimento, a mulher rezou durante uns dez minutos.
A voz da reza comprimida na garganta como quem não se resigna com um acontecimento. Daí rebentou em ruidosa emoção.
Uma mulher tão bela chorando na frente daquele conquistador barato ensejava a oportunidade da aproximação. O coveiro Dom Juan do Cemitério Verde não perderia a chance: pôs-se a acalentar a jovem com afagos na cabeça.
- Éhh!!... – justificava seu pranto a mulher, após rechaçar o carinho de Macarrão – “Quem vê cara, não vê coração”, não é assim que se diz? Deixa pegar na bolsa... Cadê? Aqui... Achei. Isto é um exame de sangue que eu peguei hoje de manhã: HIV positivo. Eu tenho AIDS.
Silêncio. Choro calado nos olhares perdidos.
Macarrão não sabia o que dizer. Não disse nada. Sentia agora uma repulsa mesclada com compaixão, e os olhos vividos não retiveram o princípio das lágrimas que lhes desceram pelas faces.
Abraçou a mulher, forte e comovidamente, e a pedido, partiu deixando-a só com sua finidade.
Dali a meses, houve um enterro de um corpo sem alma soro positivo.
Macarrão correu até o plantão do dia e questionou a localização da campa, se era cadáver feminino, se foi mulher loura e se abriram o caixão - tão atabalhoado esqueceu que as doenças infectocontagiosas lacram os corpos em folhas metálicas.
Para seu alívio egoísta, não foi loura nem era mulher. Era um jovem rapaz vitimado por algum prazer.
De longe, Macarrão observava o enterro e os circunstantes. Rostos esqueléticos, corpos finos. Todos portadores da maldição em flagrante combate contra a destruição, a cantarolar jovens astros da música, vítimas recentes e iguais da mesma moléstia misteriosa.
Ele lembrou-se da mulher alourada e se viu à mesa do jantar com sua esposa e filhos, rindo-se todos da beleza da vida. Veneradamente ajoelhou!
Chorou com tanta paixão que parecia, ele mesmo, em vida, estar-se contido naquele caixão – partindo, contrariando a dádiva da vida, refém de um destino insondável.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

CRÔNICAS DOS COVEIROS DO CEMITÉRIO VERDE - XVII - AMOR ALÉM E ATRÁS DOS TÚMULOS

Tantos foram os casos tidos à luz do dia, à claridade da tarde, na boca da noite e na penumbra da madrugada que não os poderia contar nem dizer.
Tanto dentro como fora daquele quadrilátero santificado, continuavam insufocáveis os desejos da carne, a luxúria - o sexo é algo iniludível.
A Necrópole tinha tantos hectares e tantos eram os seus meandros, aclives, declives, edificações, becos, ruelas e recônditos convidativos, que surgiam, amiudada e repentinamente, pessoas transando ou esfregando-se numa brecha qualquer.
Aliás, por vigilância ostensiva, observar e seguir casais suspeitos de anelos libidinosos constituía não uma atribuição tácita, mas sim uma imposição do alto comando da confederação de cemitérios.
A natureza é caprichosa e suprimir o instinto oferece à vezes lamentáveis subterfúgios.
Como da vez em que um casal fora visto em vias de praticar o coito sobre uma campa. Estava deserto, certificaram-se de que nenhum bisbilhoteiro iria inibi-los.
A displicência da certificação foi o resultado da pressa: não viram um curioso. Imperceptível, Neguinho-Buiú espreitava de cima de um frontão aquela cena excitante, torcendo para que o macho sadicamente arrancasse gemidos da jovenzinha. Apertava e massageava o pênis túrgido sob as calças, esperando o evento.
Como demorasse muito, Neguinho-Buiú em expectativa silenciosa, deixou a atalaia em busca de cúmplices, para formarem fila de gargarejo, supondo assim afugentar qualquer possível sentido mórbido daquele seu voyeurismo.
Cria que acompanhado estaria melhor que sozinho, e uma testemunha conviria à reabilitação da sua honra, perdida por contar continuamente façanhas impossíveis ao seu porte e incompatíveis com seus recursos.
Voltou dez minutos depois com um colega do bar do Peralta. Tarde demais! Os amantes tinham partido sem deixar sinal algum. Ainda o procuraram num raio de trezentos metros e nada encontraram.
Neguinho-Buiú ficou decepcionado, mas de tal maneira excitado... A cena pré copular não lhe saía da cabeça. Tomou banho de costas para os colegas, envergonhado da ereção.
Durante a semana não pensava em outra coisa. Obsessivamente passeava pelas partes mais preenchidas de árvores e jazigos na expectativa de flagrar outro casal arrojado em deleites. Não encontrou.
Estava na época de campanha eleitoral e umas meninas distribuíam santinhos perto dos portões.
Neguinho-Buiú, Grandão e Burquinha varriam aquela zona e as viram: “E aí, tem jeito minazinha? Hoje é sábado, sabe como é, né? Nóis tamo aqui e vocês aí... Pá... Não tão a fim de tirar um sarrinho não, heim?” – arriscou despretensiosamente o Grandão. Deu certo! As meninas se aproximaram, bateram um papo rápido e em poucos minutos estavam dentro do cemitério duas delas. Burquinha bateu em retirada, pois nenhuma moça lhe acendeu o apetite.
Na verdade ele condenava o adultério, cuja dor infligida ao parceiro sabia como ninguém.
Os dois casais caminharam solitariamente pelo cemitério, conversando e rindo. Parecia que Neguinho-Buiú saciaria finalmente sua sede de um corpo de mulher.
Fez então um sinal de parada, propôs que cada casal buscasse um caminho e se encontrassem numa confluência de ruas estreitas, algum tempo depois do gozo.
Só apareceram decorridas três horas, cada qual com um sorriso malicioso. Neguinho-Buiú, pleno de contentamento não guardava a ansiedade de contar a todos o seu desempenho sexual e como agira viril e criativamente.
Assim o fez, contou para todos quantos pôde, de noite na lanchonete do Tonho. Esfuziante, disparou tudo e um pouco mais. Minto para dizer em eufemismo: entre as goladas de vodka o pretinho soltou cada enormidade cabeluda!
Após a narração, sombreava de dúvida o olhar dos ouvintes, pois, como apontei antes, Neguinho-Buiú definitivamente não encarnava a credibilidade. “Será que ele fez isto mesmo? Será que ao menos ele trepou com a fulana?”
A confirmação veio em três dias - para você leitor, porque os espectadores do bar terão envelhecido com a dúvida: Neguinho-Buiú sentia um prurido incessante na genitália e o pau chamejava urina. Estava com blenorragia.
Vexado que ficou, fez o tratamento às escondidas dos colegas, à base de injeções e beberagens. Poderia ter sido pior, uma doença fatal, e aí não haveria injeção ou comprimido, por enquanto, que desse jeito.

sábado, 19 de novembro de 2011

Como posso cooperar para um mundo melhor em 2012?

Pensando bem: longe de serem façanhas ou barreiras intransponíveis, ou ações de honra e benemerência; ao contrário, são singelas as inúmeras ações com as quais eu posso contribuir para um mundo melhor em 2012!
Atitudes tão aparentemente inexpressivas para a complexidade do mundo – talvez por isso de aparência démodé, sem o gozo da admiração; despercebidas do olhar pretensioso e moderno.
Medidas simplórias que vão de ceder lugar ao mais velho, ou vez à gestante; ou fazer a lição de casa com os filhos, até buscar iluminação espiritual ou uma nobre causa pública.
Mas uma coisa, no entanto, chama muito minha atenção. Está à míngua.
Tudo que existe é por causa de pessoas, e elas são diferentes em cultura, origem, credo, cor, gênero e filosofias de escolha.
A pessoa míngua sufocada nas camadas de cidadão, consumidor e peça dispensável do maquinismo social.
Posso cooperar para um mundo melhor em 2012, então, respeitando a diversidade das pessoas.
Despojando-me dos ódios, dos rancores, das mágoas nascidas de mal entendidos e dos ruídos (muitos ruídos) de comunicações mal articuladas.
Livrando-me das raivas, das aversões, das antipatias, dos preconceitos desbotados que dormem na minha mente, sem razão ou substância.
Permitindo-me liberar e receber perdão.
Refletindo-me no outro, nas suas necessidades, nos seus anseios, nas suas angústias.
Estudando com afinco para que as pessoas tenham qualidade de vida com meus aprendizados.
Trabalhando com ardor para que as pessoas possam comer do melhor fruto que eu plantar.
Rechaçando com veemência qualquer jogo de corrupção - ganho mesquinho de poucos mal evoluídos por vez, enquanto muitas pessoas esperam o melhor comportamento, lícito e justo, para evoluírem nas suas trajetórias.
Tratando bem as crianças, os jovens, velhos, homens e mulheres: o esteio do futuro, a herança da cultura, a seiva da vida!
Participando de uma enorme e contagiante corrente do bem: auxílio mútuo e compreensão em tudo que puder; em tudo que eu fizer.
Meus andares sejam macios, minhas ações, bons frutos; minha fala, fértil; meu pensamento, puro!
Como posso cooperar com um mundo melhor em 2012? É simples: RESPEITANDO AS PESSOAS.
Respeitando e continuando em respeitar, contribuirei para um mundo melhor também em 2013, 2014, enfim, enquanto o sempre existir.

CRÔNICAS DOS COVEIROS DO CEMITÉRIO VERDE - CAPÍTULO XVI - A DECISÃO DE PORCA

Dia nublado de um frio incômodo de inverno, com o sol arriscando uma espiadela pelos interstícios do nevoeiro.
O Porca chegava esbaforido, atrasado e resoluto: “Quero ir embora daqui. Quero minha transferência para o Cemitério Azul!.” Falou decidido ao administrador - um sujeito demagogo que estava no ramo há décadas.
Iniciara sua gestão do cemitério há duas semanas em substituição à Divina.
“Quero ir embora agora. Já tive no Cemitério Azul e o administrador de lá disse que por ele tá tudo bem e que já tem um funcionário pra fazer a permuta comigo.” Considerou peremptoriamente o Porca.
O politiqueiro, conhecendo os relatos do encarregado que atestavam a importância funcional do Porca (sabia inclusive da sua intenção de ir embora em função do amigo Miguelito, que o deixara para encontrar melhor clima de trabalho), por alguns segundos em silêncio e de memória, avaliou a enquete que fizera entre os colegas do solicitante:
- Mas Lúcio Walter, você me pegou de surpresa – era afetada a gesticulação do administrador. “Eu não estou preparado para abrir mão de nenhum funcionário, e pelo que soube de você, menos ainda. Pondere um pouco. Você tem férias vencidas? Quer alguns dias para descansar... Ou pensar?”
“Quem sabe não são problemas que você tenha pendentes – continuou -que deva tirar alguns dias para resolver, não é? Depois você volta com a cabeça mais fresca, heim!, que tal?!”
- Não. Eu não quero é ficar mais aqui. Tô muito decepcionado com alguns colegas; tenho férias vencidas sim e os antigos administradores não me deixaram sair. Meu pai está doente lá em Nova Jerimum; meus filhos ficaram doentes nesses tempos agora, e... Eu não quero mais ficar. Se o senhor não me transferir... Eu não sei não...
O chefe tentou demovê-lo em vão. Pediu uma semana para decidir, mas o sepultador já estava decidido e o “não sei não” era ameaçador e irredutível.
Sua idéia: atrasar diariamente, trabalhar com morosidade e sustentar-se com cachaça até conseguir se mudar.
Não tendo ouvido a aprovação imediata, esperou dias. Não foi procurado para o retorno da solicitação. Porca não teve jeito: deu início ao “eu não sei não”.
O encarregado, que o conhecia de longa data, sabia da persistência dele, sabia que era irremediavelmente opinioso e iria fazer o quê fosse necessário para se transferir.
Uma semana depois, a resposta positiva tornou a cor à pele e repôs o sorriso na cara do coveiro. Era todo festa! Despediu-se dos colegas, dos desafetos, do Tonho do bar, dos logradouros, não se esquecendo de acenar para os túmulos e para um ninho de pardais que transladara para um galho mais alto, para salvá-lo dos gatos e, principalmente, das pedras da molecada.
Em sua saída, lembrava um retirante com sua trouxa nas costas, o violão a tiracolo e uma sutil melancolia, não fosse a certeza de encontrar conforto espiritual e alento ao lado de seu inseparável amigo.
No limítrofe do Cemitério Verde, Porca estacou, virou e espichou o pescoço, lá estava a cova 15655-A da quadra 35. Retrocedeu pelo atalho e aos pés da sepultura murmurou: “A senhora me desculpe e pede desculpa também para o seu marido, mas eu preciso ir. Quando dé eu venho visitar a senhora”.
Despediu-se da falecida esposa daquele seu colega velho dos finais de semana, esquecendo-se que ele jazia ao lado de sua amada mulher.
Só lembrou a morte daquele homem duas horas na frente, quando abraçava efusivamente o Miguelito.

sábado, 5 de novembro de 2011

CRÔNICAS DOS COVEIROS DO CEMITÉRIO VERDE - XV - PAIXÃO RECOLHIDA

Era um fim de junho, data marcada para uma partida de futebol – final de algum campeonato, provavelmente da copa do mundo a julgar pelo indizível entusiasmo e a euforia.
Sei lá! Mas era interessante a quantidade de torcedores que reunia o time adversário em todo país. Uma contradição ao que se dizia tratar de uma rivalidade histórica, arraigada, cuja motivação se perdeu na memória das gerações mais recentes para tornar-se padrão sem fundamento – ouviam-se, até nas televisões, galhofas sobre seus sotaque e cores oficiais.    
Por essas épocas não só os coveiros, mas todo o povo parecia estar tomado de contagiante excitação, e um torpor causava o esquecimento dos pungentes problemas que viviam.
Era rediviva a frouxa idéia de nacionalidade, a tola ufania patriótica esquecida nos quadriênios que antecediam ao certame esportivo, escamoteada pela xenofilia e esnobismo - típicos de uma cultura servil.
O retardatário, apesar de residir longe, levou um aparelho televisor para os companheiros assistirem à decisão.
Torciam freneticamente para seu grandioso time, que levava já a vantagem de dois pontos no escore. Alguns, no entanto, tomavam as dores do antagonista, talvez porque, de alguma forma a hostilidade com que torciam os outros lhes lembrava como foram recebidos na cidade, quando abandonaram o chão de suas terras.
Chovia um pé d’água!
Quando o jogo estava no auge da empolgação, raios e trovões estrugiram transformadores de energia da rua, fuzilando a alegria dos espectadores.
Ficaram desapontados. Mas o dia continuava claro, embora um céu pejado de nuvens.
Restava o baralho, outro brinquedo das horas de recreação quando encerravam os trabalhos. Quatro iniciaram uma rodada de pife.
Os evangélicos reuniram-se do lado de fora para comungarem das Escrituras; outros três isolaram-se para contratarem um serviço “impróprio”; Grandão e Neguinho-Buiú confabulavam sobre as últimas ações de justiceiros do bairro.
O resto se espalhou sem vestígios, voltando mais tarde para o banho e as despedidas.
Um dos jogadores de baralho fitava as cartas, com intensa tristeza nos olhos, esquecendo de depor a mão. Os companheiros esperavam, considerando que fosse análise demorada para uma cartada sumária.
Por fim a pressão: “Como é, vai jogar? Tá embaçado este teu jogo, heim! Camarada! Ah!...” – emprestando o jeito da nordestina Divina.
- Sabe rapaziada, não quero mais jogar. Vou deitar um pouco. - disse o tristonho.
- Mas por quê? Óia aqui, seu jogo tava bom pra caralho!
- Não quero cara! Joga vocês.
- Ih! Ó o cara meu! – virando-se o zombador – Que foi meu, cê brigou com a mulher? Tá com dor na piriquita?
Eis a deixa para o desabafo. “Pior cara! Ela foi embora ontem de noite. Disse que eu não gostava mais dela, que era incorrigível com a mulherada, briguento, boca suja, preguiçoso... e o diabo!”
Desatou num choro tão sentido que os colegas não puderem caçoar.
Entre soluços, lágrimas e catarro, continuou torrencialmente suas lamúrias: “O pior é que eu fiz a descoberta que gosto muito daquela desgraçada! Tá certa que andei gastando um dinheiro com uma vagabunda, mas acabou. Faz tempo que acabou. Eu trepava com a pilantra, mais nada. Ah!, a bebida? Concordo que eu tomo uns aperitivo todo o dia e uma cachacinha para as refeições... Às vezes exagerei mas não faço nada de errado.”
Repentinamente, em transe, balbuciou surdamente:

Luxurioso,
Assaltante de si mesmo.
Réu e executor a serviço da inconsciência.
És louco (são às vezes).
Resistes à infelicidade?
           Truculento: briga no tráfego dos corpos,
 Bate na mãe, cospe no pai, chuta irmãos...
Você é reflexo da Necrópole
 - grama, concreto, tijolo e aço;
Carnes apodrecidas nos subsolos.
Tentáculo implacável a corroer!
Digo a ti e tudo também te diz: és bom e tens destino!
O mal não te habita, mas te frequenta.
Estás em repouso, ele tira num puxão.
Vai-se a condição. Te deixa vazio.
Não mais consorte, ou pai,
Nem aquele velho
Bêbado da alegria anciã.
Indolente. Indecente. Inocente!
Um homem. Um simples homem. Eis o homem!

- Sou homem... Sou um bom homem, porra! Por que ela me abandonou? Me dá minha roupa, Burquinha. Vou buscar minha mulher de volta. Ela vai ver o coveirinho apaixonado, ahh se vai!!! Pro Zé, fala pra aquele filha da puta deixar meu dinheiro da caixinha com você Macarrão; amanhã eu pego. Ele já me enrolou uma vez... Confere o que deu no plantão antes, porque com ele eu não quero papo, falou?
- Tá bom meu, eu guardo. Mas daonde cê tirou isso que cê disse? – Hesitou Macarrão, agarrado ao grupo apavorado - posto que soubessem da mediunidade do Romeu, essa teria sido a primeira vez que o viram incorporado.
- Sei lá cara! Saiu... Fui... Tchau! – E saiu, disparado, aos berros: “Eu te amo sua filha da puta!”

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

MENINA-MOÇA-MULHER

Dalém da crueldade e das lamúrias do homem;
Das taras e simplicidades vãs do planeta;
Do entorno e do mundo prêt-à-porter;
No centro do corrupio das tormentas,
Acordada, dormes.

Noutro espaço descortinas mundos não visíveis,
Inatingíveis, improváveis...
No desvelo da vigília do avesso
Buscas o algo que aqui não há.

Assim, na ventriloquia de tuas consortes imaginárias,
Feéricas e épicas,
Vorazes, bonitas, insanas,
Energizas a alma e os músculos!

Não desperte, durma.
Serena, plácida, silenciosa...

Durma que o tempo passará.
Repouse - que é a tua distinção,
Que não ofusca nossos corpos diáfanos, frágeis...

Sonhe comigo, me introduza no teu mundo translúcido,
Nas tuas experiências orgíacas, nos teus projetos,
Nas notas do teu solfejo matutino, que entoas rigorosamente igual todos os dias, quando apareces terrena!

Cante, menina linda, cante!
O canto azul do céu gris,
Folha de árvore frondosa em sequidão de cerrado.
É o gorjeio da própria vida!
Durma e cante, menina linda!

Não desperte.
Intacto, eu peço que fique o casulo de paz que te protege,
E incessante seja a seiva floral que te sustenta.

Não desperte, cante.
Segue vicejando,
Sê forte, pois o entorno cruel das lamúrias não cessa...

Segue firme teu passo bambo equilibrado,
Que as taras e sutilezas vãs,
Torvelinhos são sempre...

Nos entremeios do prazer, porém, toma cuidado!
Toma muito cuidado!
Cuida que o amor engana em existir
E arrebata como besta-fera indefensável.

E arrasta em valsa macabra aos que erram as escolhas,
Esfarrapa sonhos,
Despedaça fantasias,
Afoga em mágoas, asfixia em rancores, desespera em amarguras...
Lança na singularidade toda razão.

Assim durma, cante; mas se acautele dos homens maus, meu anjo!

domingo, 9 de outubro de 2011

CRÔNICAS DOS COVEIROS DO CEMITÉRIO VERDE - XIV - ASCENSÃO DE UMA MULHER

Tudo o que é bom e belo necessariamente lembra a mulher! Posto que seja oprimida e desprezada na sua magnitude e no seu resplendor, conserva absoluta e vigorosamente o viço da beleza, o arquétipo da humanidade, caso esta fosse complacente e generosa!
A ascensão ao posto de administradora por uma senhora, digo, uma mulher jovem – senhora é por força do cargo, o mais alto do perímetro -veio dar novo alento aos empregados.
Uma das poucas, senão a primeira mulher responsável por tantos homens, tratando de um serviço inusitado para si, em si era igualmente inusitado para os funcionários.
Uma boa dose de machismo e a particular percepção da impropriedade do trabalho para uma moça foram complicadores da aceitação da mandatária.
Afinal, à mulher associavam apenas a gentileza, educação, fineza, sociabilidade, faceirice; umas pitadas de futilidade, além do que - é claro! - o sexo. Isso, evidentemente, era a principal coisa para o que as mulheres serviam - pensavam nossos sofridos personagens.
A teoria dos funcionários não vingou. A mulher tinha uma fibra incontestável!
Com uma vivência política na militância aguerrida voltada para a prática, demonstrou a que veio na primeira reunião, já no primeiro dia de trabalho. 
- Olá rapazes! Meu nome é Divina, mas só o nome, porque eu sou de carne, ossos e nervos, e, segundo a Santa Amada Puta Igreja, tenho também alma...
Em pouco mais de uma hora, Divina criara a desconcentração necessária para sondar todos os problemas, implantar as soluções cabíveis e impulsionar a mola propulsora do homem: o pensamento.
Toda solução era discutida, fosse para melhoria dos expedientes ou problemas individuais dos funcionários.
Não havia dúvida: estava implantada a democracia cemiterial, que em poucos meses viria a mostrar sua faceta negativa.
Não que eu seja autoritária – pode parecer clara uma leve tendência antidemocrática no que vou falar, mas convenhamos: a lentidão dos eternos protocolos, reuniões incessantes - até para discutir cutículas encravadas; o descontrole da noção de mandante e subordinados... Ora, a necrópole não é um país nem um partido político, menos ainda um centro acadêmico.
Ela precisava ser limpa, os sepultamentos e exumações deviam ser feitos, tudo conforme os regulamentos prescreviam para a segurança e higiene, diariamente. E era feito dentro de um esquema rígido que existe em qualquer estrutura hierarquizada.
Mas, continuando: por enquanto tudo uma maravilha! Divina era tratada como redentora do povo, cheia de paparicadas; cercada por um bando de fás que a incensavam ininterruptamente, com todos os louvores que pudessem fazer.
Certo dia, durante outra reunião – a terceira da semana -, assuntos novos foram pautados e dentre eles a supressão das caixinhas que os sepultadores ganhavam ao final de cada enterro. Pronto! Estava aberta uma ferida muito dolorida!
Sem caixinhas os salários eram imprestáveis. Com elas a remuneração era de bom complemento.
Mas não, “a caixinha, companheiros, é mutiladora da energia moral dos trabalhadores. Ela é conformista, humilhante. Ao invés de receberem caixinhas ou gorjetas, nós devemos lutar por melhores condições de trabalho, levantar nossas bandeiras de luta por melhores salários e exigir nossa participação nas decisões mais amplas da empresa...” blá, blá, blá... – o mesmo discurso anacrônico de uma esquerda irritante e distante daquele pessoal, como qualquer astro celeste.
A popularidade de Divina foi decaindo meteoricamente até se tornar oposição e depois, pura antipatia, aversão visceral a seu discurso panfletário e a sua voz.
Desavisada, insistiu na formação política de seus representados, esquecendo-se, no entanto, de realizar uma pesquisa de opinião.
Vertiginosamente a esqueceram. Nas rodas de pagode do botequim, nos churrascos domésticos, nas reuniões familiares, nas celebrações de casamento e batizado, em tudo já não era mais convidada.
No trabalho, durante o expediente, já ninguém adentrava ao escritório para bajulações de costume ou para conversas e chistes habituais.
Nas reuniões a apatia tornou-se o modo principal como participavam, quando as freqüentavam, obrigatoriamente por convocação.
Bastou que além de intrometer-se no tema sagrado das caixinhas, ela os lembrasse das eleições oficiais daquele ano, para definitivamente ser alijada do companheirismo dos homens. 
Ela não resistiu ao ostracismo que a impuseram. Demitiu-se nove meses depois de uma bonita gestação, abortada.
Da experiência, contudo, restou enorme respeito pelas coisas que Divina inoculou em seus corações.
Aquela nordestina de raça e de práticas explicitamente democráticas!
Coloco aqui, data vênia, minha ressalva: mesmo na democracia existem líderes com séria determinação para o poder. E o que muitas vezes parece ser voluntarioso não raras vezes pode ser quase autoritário.
Divina vinha de grupos extremistas, negócios paramilitares além das fronteiras, portanto sua formação era miliciana e sua ideologização era contundente, de cima para baixo como um bate-estaca.
Não abria mão de nenhum ardil para aderir mais conscritos a sua causa revolucionária. A amizade era só mais um meio de cooptação. As pessoas e as coisas tinham importância relativa.
À vista do manifesto desinteresse pelos altos assuntos que propunha, ela começou, de certa forma, a hostilizar os que sincera e francamente se opunham aos temas debatidos.
Corte no plantão, ameaça de advertência por desídia e modificações de horários foram alguns expedientes usados por Divina para velar a raiva que sentia de sua frustrada administração de política conceitual.
Mas, unidos e silentes, os sepultadores contrários às medidas propostas, tacitamente submeteram Divina ao mais relevante desprezo e isolamento.
Ela foi vencida. Foi-se embora.
Não obstante tenha servido à dialética: os homens mudaram.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

CRÔNICAS DOS COVEIROS DO CEMITÉRIO VERDE - XIII - BURQUINHA – O HERÓI

Burquinha, depois dos minutos de fama, celebridade instantânea e transitória, não se aparentou metediço ou pomposo.
Tendo destruído num breve discurso a mística agourenta do coveiro, também não hasteou bandeiras de luta. Nada de solene agravou seu comportamento.
Continuou na faina normalmente sem que o aparecimento na televisão para um público tão grande modificasse seu jeito brejeiro. A fama, ou pelos menos seus 15 minutos não o exaltaram.
Inveterado, continuou com as libações de álcool no bar do Tonhão, as zangas, as brigas.
Bem lá no fundinho, a gente sabe que a indiferença não empanava o orgulho que sentia do seu feito.
Ele se orgulhava. Felicitava-se pela notoriedade, pelo prestígio, mas não como o que pudesse lhe propiciar alguma vantagem política ou econômica da sua imagem. Era orgulho ingênuo!
Não era a primeira vez que tinha feito algo de grandioso por seus companheiros.
No passado fez outras tantas, nada mudou, como estava convicto de que o seu desabafo televisivo igualmente não mudaria. Permaneceriam ganhando más pagas e o juízo com lhes julgavam estaria inalterado.
A memória do desinteressante é ainda mais pálida quando arremessada no turbilhão de nulidades, erigidas diariamente nas mídias.
O preconceito é obra secular, e mudar conceitos demanda contínuas gerações iluminadas.
No trabalho o herói era interessante de notar! Tinha ora um ar sério e compenetrado; uma personalidade aspérrima e metódica para cumprimento das obrigações profissionais, ora uma irreverência inaudita de quem não dá a menor importância moral para o que está fazendo.
Na incipiência do emprego – lá pelo primeiro ano das coisas da morte -, conviveu pela primeira vez com a desconfiança e a suspeita da situação de arrombamentos de túmulos.
Tamanha foi sua indignação que se ofereceu para pernoitar no cemitério noites seguidas até que se encontrassem os desgraçados.
Não receberia nada a mais, nem nenhum privilégio pela sua cooperação. Continuaria trabalhando desde cedo e cumprindo todas as tarefas nas mesmas condições.
Nas primeiras noites, nada especial além do silêncio das covas e a amplificação do farfalhar das folhas, dos pássaros na alvorada e dos ruídos e sussurros dos vigilantes.
Durante um ronda, entretanto, os patrulheiros noturnos se dividiram para emboscar os pilantras, caso os vissem. Era pequeno número em relação à área do campo santo, somente um homem para cada sessenta e oito mil e oitenta e seis metros quadrados.
A visão ou distinção de suspeitos era deveras difícil em função das mais de cento e vinte e duas mil campas, com frontões a maior parte, e pouco menos de trinta e cinco mil estátuas, que, não fossem a intrepidez e firmeza de propósito, o preparo físico e moral, e o equilíbrio adquirido nos treinamentos, elas poderiam enganosamente receber um projétil ao menor escorrer de suas sombras, tão parecidos eram esses efeitos com o movimento dos vivos.
O sepultador estava pelo lado Norte da Necrópole, andando arqueado por entre os túmulos, buscando qual lince enxergar através dos cenotáfios, os ladrões de covas.
Um ruído de metal... O coveiro andou um pouco na direção do ouvido detector e escutou com maior intensidade o barulho; se aproximou mais e viu uma luz frouxa saindo do subterrâneo de um jazigo, pelos interstícios da portinhola de bronze.
Burquinha era muito corajoso, mas não confundia burrice com bravura.
Precisava elaborar um plano para surpreender aqueles desinfelizes que incomodavam a sua honra.
Aguardou até que pudesse discernir pelas vozes ou ruídos diversos, quantos malditos trabalhavam ali. Eram dois. Vacilou entre atirar para o alto – os guardas permitiram que usasse seu revólver vinte e dois, com a condição de não alvejar ninguém, mas apenas intimidar - ou chegar atirando. Optou pela segunda ação, mas estacou agachado... Não era o melhor a fazer, não o haviam autorizado.
Decidiu chamar a atenção para que saíssem da toca, ou melhor, da cova.
Curiosamente, veio à imaginação o belo futebol da seleção brasileira de 1982, os gols, e imaginou-se com a copa ganha, entre os jogadores, num enorme pódio, recebendo também uma medalha enquanto o hino nacional era executado... Todos estavam emocionadíssimos!
Arrebatado pelo risco da realidade, decidiu definitivamente tirá-los da cova.
Levantou-se e correu rapidamente pela frente da luz, a fim de assustar os malandros. Teve êxito!
Um deles tão assustado com o vulto, soltou um grito e imediatamente saltou para fora. Burquinha teve o miserável à boa vista para atirar contra ele, mas o fez no chão para rechaçá-lo dali.
O ladrão saiu correndo por cima das sepulturas como pisando em brasa, demonstrando desenvoltura e boa forma. Em poucos segundos desapareceu por cima do muro.
Restava um safado, que não tardaria a sair. Num instante subiu tão ligeiro quanto engatilhou a corrida, mas Burquinha o deteve pulando sobre ele do alto do frontão do túmulo vitimado.
Foi uma luta desigual porque o homem mau, embora atacado pelas costas, era muito mais forte que o coveiro, e não demorou a subjugá-lo.
Burquinha usando alguns golpes que vira num seriado de tevê desvencilhou-se das poderosas mãos do homenzarrão, aplicou-lhe um telefone e chutou-lhe as bolas, sempre acompanhando cada golpe com um tradicional “Iah!!”, como nos filmes do Bruce Lee.
O grande gatuno ficou imobilizado, gemendo de dor. Burquinha, como Bruce, roçou a ponta de um polegar no nariz, num gesto imitativo do ritual do mestre do kung-fu.
Vieram os vigilantes profissionais, algemaram o gigante ladrão e o levaram para as determinações da justiça e do delegado. Aliás, o mesmo doutor que onze anos depois interrogaria os sepultadores sobre casos de vilipêndio de cadáveres.
Os policiais condutores do “minerador” se arrogaram da captura e receberam glórias e insígnias.
Para Burquinha, secretamente herói, a honra foi recuperada e ninguém mais iria suspeitar que ele e seus colegas fossem capazes de tamanho sacrilégio.
Bem, isso até as posteriores investidas dos violadores de túmulos.

sábado, 10 de setembro de 2011

CRÔNICAS DOS COVEIROS DO CEMITÉRIO VERDE - XII – MINERADORES

Nada do que estou contando deve ser motivo de colossal estranheza.
Hás de recordar, vagamente que seja de reportagens impressas de assaltantes de túmulos. Pessoas inescrupulosas que de tempos em tempos se dedicavam à devastação de sepulturas para assaltá-las.
Aliás, trata-se de uma profissão bastante antiga, talvez tão antiga quanto a prostituição. Bom, talvez não tão antiga! Talvez requeresse muitas gerações póstumas a Noé para que o gênio e a inventividade humana, no momento de miséria espiritual e material mais retumbante desse azo à tão indigna atividade.
Disseram que era ação pré-estabelecida por quadrilhas que, por falta de oportunidade de maiores vilezas, arrombavam jazigos, saqueavam o campo santo à procura de dentes de ouro e outros objetos de valor – disseram que principalmente dentes de ouro.
Entretanto, os violadores detidos negavam que houvesse ação tão premeditada e se apresentam como simples meliantes, vagabundos sem eira nem beira.
Choca perceber que, independente de que esses assaltos ocorressem com frequência, e que os poucos detidos fossem os tais biltres, os primeiros e contundentes suspeitos eram sempre os sepultadores.
Afinal supunham serem eles os exímios conhecedores do cemitério, para quem apalpar corpos putrefatos, fétidos, não oferecia incômodo nenhum; além disso, são “figuras desprezíveis” mesmo! Não é?
É assim: longos períodos de rotina e calmaria. De repente numerosas violações, sepultadores suspeitos. Não há outros, são sempre os primeiros interrogados, vigiados, a quem se prepara as esparrelas e se faz sistemáticas pressões psicológicas.
No decorrer de um período desses, em que as violações aconteceram noites seguidas e atingiram centenas, fazendo com que as necrópoles parecessem Serras Peladas - depois de tanto furor e especulações -, destacaram o delegado das proximidades para as investigações profissionais.
A diligência sempre se instaurava com ar de assombro, como coisa inusitada; certo quê de descrença; certa dose de indignação... E muita vontade de reprimir, de extravasar a truculência adormecida no coração de mitos homens.
Como se fosse novo na questão, na mente do doutor em assuntos criminais a suspeição recaiu sobre quem? Os coveiros, óbvio!
Todos os contatos arrumados foi-lhe permitido recolher o depoimento daqueles funcionários, cada um de per si.
Na sala/refeitório os homens estavam num rebuliço só! Isto sempre os inquietava.
O primeiro a depor foi o simpático Burquinha.
Empertigou-se na cadeira de depoente (ou seria de réu?): “Doutor, que lamentável isso, né? Será possível? Mais de doze anos eu trabalho de coveiro e isso nunca acaba, é sempre assim...” – atalhado pelo delegado: “É sempre assim como, senhor... Burrrr... Burquinha? Hã! Como é sempre assim, heim?”
Burquinha sentiu o lugar que lhe reservava a vox populi expressa pelo doutor, naquela sociedade preconceituosa : Um lixo! Caso o lixo não se ofendesse, claro!
Indagou-o com frieza sobre seus colegas, sua rotina, seu salário, sua família, a saúde de seus filhos, seu orçamento doméstico, sua possível reação a uma crise financeira. De quando em vez, trocava a carranca por um véu de sorriso, simulando simpatia, declinando do assunto para imediatamente retornar à circunspecção do tema: “Desconfia de alguém aqui dentro Seu Burquinha? Algum colega menos ético ou menos responsável, com problemas financeiros ou debilidade mental?“
Notava-se claramente o desagrado da pergunta nas faces avermelhadas e o semblante carregado de ódio e tristeza de Burquinha. Este nada respondeu. Apenas perguntou como recobrando o moral: “É só doutor?”
Burquinha concluíra sua parte, e a cadeira, ocupada por outros sepultadores, mal esfriou naquele dia.
Isto se repetiu durante todo o dia. O delegado sequer pausou para almoçar. Bebeu muitas xícaras de café até terminarem os depoimentos.
 “É uma maldição! Além de tudo, temos que passar por mais essa humilhação!” – desabafava Burquinha com seu copo transbordando de um elixir de conhaque com carqueja.
Três dias depois do festival de depoimentos - a Inquisição conforme compararam alguns -, foi preso na madrugada subsequente um violador de cadáveres que assumiu toda a responsabilidade, juntamente com outros dois inescrupulosos co-autores que conseguiram fugir na escuridão.
Os fugidios não tiveram moleza! Foram capturados no Cemitério Rosa, exatamente onde o delator agendou o encontro para mais uma sombria mineração.
Houve alívio. Na lanchonete do Tonho, após o expediente do dia da captura, exultavam muitos dos, por agora, ex-suspeitos. Mais uma vez não puderam provar nada contra eles. Estavam inocentados outra vez!
Mas a indignação continuava pairando, esconsa no peito.
Nas semanas que seguiram, uma emissora local de televisão fazia reportagem sobre as esculturas da Necrópole, quando uma algazarra atrapalhou o encaminhamento da equipe. Era uma senhora escandalizada por ter visto uma tentativa de assalto há poucos metros de si.
Parte de nossa imprensa tem algo de sensacionalista e sangrento – bem vi num texto de um cronista - não me engana a velha memória - fazendo tudo parecer que é melhor se for ruim, porque, supõe, vende-se mais daquilo que o povo deseja.
Como se o povo realmente fosse sórdido, doentio e viciado nas coisas rasteiras quem chamam de grade televisa.
Como se parecesse que do jornalismo faz parte não perder escândalos em detrimento de uma matéria cultural, se necessário.
O banzé armado, a velhinha falando pelos cotovelos, a câmara registrando tudo, irrompe Burquinha, orador ativado contra a leviana ligação que fizera a velha entre o punguista medíocre e os coveiros:
- Vejam vocês meus senhores. Isso vai para televisão? Ah, vai!? Tá bom! Todos que trabalham neste lugar são pessoas honestas; o trabalho que fazemos é muito difícil e ninguém, ou quase ninguém tem coragem pra fazer. Nós temos! Alguém tem que ter... e nós temos! A importância verdadeira de um trabalho é o fato de ele produzir efeito na sociedade. Imaginem que a gente não existisse... Outros homens e mulheres que precisam de trabalho estariam aqui para prestar este serviço à sociedade; serviço de muita importância...  E poderia ser um vizinho, um irmão, o pai ou mãe de qualquer um que ataca a gente... E se ninguém tivesse coragem para mexer em cadáver e osso e em carne podre? Porque é isso que a gente vira depois que morre: lixo, lixo muito sujo e mal cheiroso. Como seria? O que vocês não sabem é que a gente ganha uma miséria de salário, trabalha todos os dias, e sempre que somos convocados. Não temos nenhum benefício a mais por isso, e até as horas extras são mal pagas. Corremos o risco de pegar uma doença porque nem sempre temos material adequado, e ninguém reconhece (...).
Parou por alguns segundos para tomar fôlego e rebentou em raiva e gesticulação, mas nada obsceno: “(...) Ninguém reconhece droga nenhuma que a gente faz... Pergunta praquele velha...” – indigitando-a ameaçadoramente - “se ela tem coragem de pegar o parente dela que tá enterrado lá embaixo, ela tem? Então, porque o que não presta é sempre a gente que tem haver? É isso que eu queria falar... Obrigado! Tchau, obrigado!”
E saiu triunfante, abraçado por todos os colegas e alguns transeuntes rebeldes que se haviam postado ao redor da equipe de tevê em favor dos trabalhadores, incitando e gritando palavras de ordens: “Abaixo a repressão. Abaixo a injustiça social...”
O discurso do Burquinha foi visto nos telejornais vespertinos e noturnos com grande audiência. Ele foi porta-voz das agruras daqueles homens que só desejavam mais respeito. 

GRACIAS ANDINAS