sábado, 5 de novembro de 2011

CRÔNICAS DOS COVEIROS DO CEMITÉRIO VERDE - XV - PAIXÃO RECOLHIDA

Era um fim de junho, data marcada para uma partida de futebol – final de algum campeonato, provavelmente da copa do mundo a julgar pelo indizível entusiasmo e a euforia.
Sei lá! Mas era interessante a quantidade de torcedores que reunia o time adversário em todo país. Uma contradição ao que se dizia tratar de uma rivalidade histórica, arraigada, cuja motivação se perdeu na memória das gerações mais recentes para tornar-se padrão sem fundamento – ouviam-se, até nas televisões, galhofas sobre seus sotaque e cores oficiais.    
Por essas épocas não só os coveiros, mas todo o povo parecia estar tomado de contagiante excitação, e um torpor causava o esquecimento dos pungentes problemas que viviam.
Era rediviva a frouxa idéia de nacionalidade, a tola ufania patriótica esquecida nos quadriênios que antecediam ao certame esportivo, escamoteada pela xenofilia e esnobismo - típicos de uma cultura servil.
O retardatário, apesar de residir longe, levou um aparelho televisor para os companheiros assistirem à decisão.
Torciam freneticamente para seu grandioso time, que levava já a vantagem de dois pontos no escore. Alguns, no entanto, tomavam as dores do antagonista, talvez porque, de alguma forma a hostilidade com que torciam os outros lhes lembrava como foram recebidos na cidade, quando abandonaram o chão de suas terras.
Chovia um pé d’água!
Quando o jogo estava no auge da empolgação, raios e trovões estrugiram transformadores de energia da rua, fuzilando a alegria dos espectadores.
Ficaram desapontados. Mas o dia continuava claro, embora um céu pejado de nuvens.
Restava o baralho, outro brinquedo das horas de recreação quando encerravam os trabalhos. Quatro iniciaram uma rodada de pife.
Os evangélicos reuniram-se do lado de fora para comungarem das Escrituras; outros três isolaram-se para contratarem um serviço “impróprio”; Grandão e Neguinho-Buiú confabulavam sobre as últimas ações de justiceiros do bairro.
O resto se espalhou sem vestígios, voltando mais tarde para o banho e as despedidas.
Um dos jogadores de baralho fitava as cartas, com intensa tristeza nos olhos, esquecendo de depor a mão. Os companheiros esperavam, considerando que fosse análise demorada para uma cartada sumária.
Por fim a pressão: “Como é, vai jogar? Tá embaçado este teu jogo, heim! Camarada! Ah!...” – emprestando o jeito da nordestina Divina.
- Sabe rapaziada, não quero mais jogar. Vou deitar um pouco. - disse o tristonho.
- Mas por quê? Óia aqui, seu jogo tava bom pra caralho!
- Não quero cara! Joga vocês.
- Ih! Ó o cara meu! – virando-se o zombador – Que foi meu, cê brigou com a mulher? Tá com dor na piriquita?
Eis a deixa para o desabafo. “Pior cara! Ela foi embora ontem de noite. Disse que eu não gostava mais dela, que era incorrigível com a mulherada, briguento, boca suja, preguiçoso... e o diabo!”
Desatou num choro tão sentido que os colegas não puderem caçoar.
Entre soluços, lágrimas e catarro, continuou torrencialmente suas lamúrias: “O pior é que eu fiz a descoberta que gosto muito daquela desgraçada! Tá certa que andei gastando um dinheiro com uma vagabunda, mas acabou. Faz tempo que acabou. Eu trepava com a pilantra, mais nada. Ah!, a bebida? Concordo que eu tomo uns aperitivo todo o dia e uma cachacinha para as refeições... Às vezes exagerei mas não faço nada de errado.”
Repentinamente, em transe, balbuciou surdamente:

Luxurioso,
Assaltante de si mesmo.
Réu e executor a serviço da inconsciência.
És louco (são às vezes).
Resistes à infelicidade?
           Truculento: briga no tráfego dos corpos,
 Bate na mãe, cospe no pai, chuta irmãos...
Você é reflexo da Necrópole
 - grama, concreto, tijolo e aço;
Carnes apodrecidas nos subsolos.
Tentáculo implacável a corroer!
Digo a ti e tudo também te diz: és bom e tens destino!
O mal não te habita, mas te frequenta.
Estás em repouso, ele tira num puxão.
Vai-se a condição. Te deixa vazio.
Não mais consorte, ou pai,
Nem aquele velho
Bêbado da alegria anciã.
Indolente. Indecente. Inocente!
Um homem. Um simples homem. Eis o homem!

- Sou homem... Sou um bom homem, porra! Por que ela me abandonou? Me dá minha roupa, Burquinha. Vou buscar minha mulher de volta. Ela vai ver o coveirinho apaixonado, ahh se vai!!! Pro Zé, fala pra aquele filha da puta deixar meu dinheiro da caixinha com você Macarrão; amanhã eu pego. Ele já me enrolou uma vez... Confere o que deu no plantão antes, porque com ele eu não quero papo, falou?
- Tá bom meu, eu guardo. Mas daonde cê tirou isso que cê disse? – Hesitou Macarrão, agarrado ao grupo apavorado - posto que soubessem da mediunidade do Romeu, essa teria sido a primeira vez que o viram incorporado.
- Sei lá cara! Saiu... Fui... Tchau! – E saiu, disparado, aos berros: “Eu te amo sua filha da puta!”

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GRACIAS ANDINAS