quarta-feira, 12 de setembro de 2012

MONÓLOGO: ENCONTRO VIRTUAL – DRAMA, DESEJO E MEDO DE “UM”


MONÓLOGO: ENCONTRO VIRTUAL – DRAMA, DESEJO E MEDO DE “UM”
Tenho medo que alguém maníaco invada meu corpo a salvo, intacto; desconstrua minha identidade, ponha a descoberto meu mundo que aparece equilibrado aos olhos estreitos de meus sólidos circuitos sociais – por vezes, sócios na dissimulação da dor e da hipocrisia...  E por fim, que esse ser intrujão – facínora - vilipendie também minha alma.
Porém, é impossível não admitir o quanto me atrai e regozija a ideia de ter você assim tão perto, tanto acessível - e em tão inexpugnável segurança. Estou defeso da fúria das frustações, dos desencantos que corrompem o ânimo, que desiludem da alegria, que esmagam impiedosamente sonhos e projetos, desesperando a esperança, aniquilando convicções, pondo em risco meu mais apreciado desvelo: eu, o “um”.
Tal como uma seiva, uma energia conveniente que perpassa o corpo e vai ao espírito, ao fundo do coração até, e mais...!
Compulsivamente procuro a razão de gostar desse contato à distância - se bem haja a latência do medo de descobrir ao final, que o comportamento flui involuntário - fruto de distanciamento, da deseducação e perda da habilidade de me expor.
Quem sabe não seja então – me arrogo do estandarte - uma deliberação consciente? Mas por quê? E por que continuo procurando?
Desculpe-me tanta confusão, mas é que o mundo é cruel!
As pessoas são cruéis!
Os sistemas são cruéis!
Eu não sou. Não sou cruel. Não de caso pensado. Se muito for, terei sido ao final da vida, só mais um...
O “um” que serpenteia, ao lado dos bilhões de outros “uns”, com a corrente dos acontecimentos vorazes do mundo, as falácias, o consumo, o dissabor dos dias que passam sem efusões, sem carinho, sem amor.
[Desculpe-me o leitor que inocentemente topou com esse palavrório lamentoso, esse monodrama, essa maçada! Tenha que é um pensamento desordenado em voz alta, desses que a gente tenta compenetrar em meio a uma multidão que grita – uma incontável quantidade de “uns”].
Ah! As inúmeras vezes em que nos traímos: “somos, cada qual, o amor da vida de alguém” - li da confissão de Max Tivoli.
E sonhamos tão real que esquecemos os acordos prementes, irrevogáveis: as obrigações românticas esponsais (e as esponsais sem romantismo), a educação dos filhos e as contas – de que não pode haver distrato; compromissos assumidos noutro mundo, quando o “um” ainda não existia para se fazer dois – faltava base, faltava o outro “um”. Sempre faltará o outro “um” a fazer dois.
Porque o “um” que refiro é inteiro indivisível, sob a pena de se condenar a nada, se fracionado.
Dele se empresta e se usa; ele usa-se e empresta-se a si mesmo, mas depois se recolhe, aquieta-se, reorienta-se em busca doutros “uns”. Mas nunca haverá “um” a fazer dois, embora dois se iludam num “um” artificial e transitório.
A voz do interlocutor lhe falta. Esse “um” está incompleto! A percepção do primeiro está incompleta então!
Este busca evitar enredamento em armadilhas do coração – deslumbramento de quem ainda acredita (mais moderadamente do que outrora) na fusão para o “dois”, mesmo apostando que não acontecerá. Nunca por muito tempo...  Ou simplesmente, nunca.
Cheira fragrâncias e confere dinamismo à foto parada. Fingem-se, de olhos fechados, cenas felizes de prazer e luxúria, quando não uma nova vida, um destino novo. Excita-se, mas ao cabo de algum tempo, se resigna, se desconecta da virtualidade, como fizera tempo antes, a fugir do real.
Ele é só o que eu sou: incautos “uns”, ingenuamente procurando um dia tornarem-se dois.

sábado, 8 de setembro de 2012

Crônicas dos Coveiros do Cemitério Verde - XXXIII - DESOLAÇÃO - FIM


XXXIII – DESOLAÇÃO - FIM
É! Não houve sobrevivente.
Os jornais espetaculares estamparam a chacina daqueles aventureiros.
Tudo desolação e miséria que a tristeza não dá conta!
Ai meu Deus! O infortúnio daqueles homens! Quanta mágoa! Quanto rancor! E agora, quem vai enterrá-los juntamente com tantos outros corpos sem alma?
Quem vai enterrar esses homens perdidos? Quem vai servir de coveiro para os infelizes?
Ai meu Deus!
Agora é só escombro! Agora todos os corpos estão sem alma...
Porca foi encontrado com tiros no peito, estirado ao lado de seu melhor amigo, Miguelito. Ambos guardaram nos rostos a expressão de uma amizade eterna.
Seredião, o único evangélico combatente, pereceu com os joelhos curvados, uma bíblia de bolso numa das mãos e um revólver na outra.
Lupércio e Divina, que tinha vindo em reforço para o conflito, foram esmagados por uma escultura monolítica de mármore europeu que teria se desprendido com o abalo de explosão.
E agora? Todos os personagens estão terminados inertes... Uma equipe procura nas ruínas alguma fonte de vida. A imprensa está presente. A turba de curiosos também... Ai meu Deus! Tende piedade de nós!
Os operários I e II - construtores e jardineiros -, se dividiram entre carpideiras e contabilistas. Os últimos, dissimulando a alegria, calculavam o lucro da reconstrução da cidade dos mortos. Os primeiros mentiam se importar.
Literalmente, mal esperaram a poeira assentar: uma funcionária da Associação dos Cemitérios Privados pregava uma placa “O CEMITÉRIO VERDE ADMITE COVEIROS”.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

As Crônicas dos Coveiros do Cemitério Verde - Capítulo XXXII - CAMPO SANTO - CAMPO DE BATALHA


XXXII - CAMPO SANTO - CAMPO DE BATALHA
Os rumores eram cada vez mais intensos e depurados. Os boatos tomavam feição de notícia. Os sepultadores acompanhavam tudo pela tevê. “Não podiam evitar o inevitável...”
Prevendo que o embate, de ideológico e político se transformaria em combate armado trataram de operar a logística da resistência.
Remeteram para todas as suas diretorias regionais, instruções de armazenamento alimentar, suprimentos de armas, vigilância dia e noite, estoque de munições, remédios e roupas. Principalmente, exortaram os colegas a concentrarem o maior número de coveiros por cemitério e que a concentração deveria ser feita de maneira a mais discreta possível em, no máximo, três Necrópoles estrategicamente localizadas em regiões populosas de grande atividade comercial.
Laurenciano e seu grupo distribuíram os combatentes nos cemitérios Verde, Azul e Roxo. Grandão e Neguinho-Buiú trataram das armas conseguidas a preços baixos de traficantes e nóias. Além dos alimentos que cada um trouxe de casa, trataram de plantar provisões de mandioca, milho e batata em centenas de covas de terra abandonadas. Com nenhuma experiência de guerrilha acreditavam-se assaz munidos e fortes para durarem meses.
Não tardou. O chefe da operação repressora entrou com o ultimato de abandonarem o local, senão por bem, pela força.
A resposta gritada por Burquinha posteriormente tornou-se refrão vazio duma canção popular que ninguém conhece: “Sem dignidade não existe diferença entre vida e morte.”
O cemitério cercado, ninguém sabe de onde partiu o primeiro disparo, mas houve repentina saraivada, um trovejar de estampidos.
Burquinha, com lágrimas nos olhos azuis, danou a correr aos gritos de “filhas das putas”, com dois revólveres nas mãos descarregando a esmo.
Foi morto com tantos furos que seu corpo resultou total e completamente desfigurado – contaram-se cento e quatorze projeteis na autópsia.
Retardatário que foi socorrê-lo recebeu uma única bala na cabeça e sequer gemeu.  Caiu perpendicularmente ao lado do companheiro, formando uma cruz.
As mulheres e crianças até então seguras, estavam confinadas num barraco onde guardavam os materiais de sepultamento, e agora também suas histerias.
Soldados, sorrateiramente, saltaram os muros, armados com pesados calibres.
Ao sinal de um tilintar – que hoje se supõe da queda de um ancinho -, abriram tantos buracos na edificação de madeira quantas balas cada uma das trinta e seis armas permitiu.
Na devastação daquele barracão nenhuma alma sobreviveu.
Mais mortes rápidas: cinquenta e quatro funcionários rebeldes foram surpreendidos e mortos num brutal e sumário fuzilamento.
Laurenciano, Grandão e Neguinho-Buiú foram cravejados de balas, em franco enfrentamento com os adversários.
Não se apurou a responsabilidade de quem teria lançado explosivos que destroçaram sepulcros e corpos vivos. Vieram à superfície milhares de corpos que jaziam há anos quietos em suas campas. Capelas e jazigos foram abaixo.
A operação não durou vinte minutos.
Nos outros focos de resistência espalhados pelo país, os que não sentiram os efeitos ruinosos do combate se renderam, e seus líderes foram aprisionados.

GRACIAS ANDINAS