sábado, 21 de abril de 2012

CRÔNICAS DOS COVEIROS DO CEMITÉRIO VERDE - CAPÍTULO XXIV - POLITICANDO

                                XXIV – POLITICANDO
O treino das candidaturas foi importante, despertou um sentimento de classe nos homens; gerou expectativas e principalmente, permitiu que vissem suas vidas com mais inteireza.
Concluíram que deveriam depor os comandantes, todos, e realizar eleições diretas já!
Destituir o jovem encarregado parecia grande traição, mas era o preço da evolução. Estavam ansiosos por novos ares.
Tempos novos, mudanças, deixam a gente apreensiva, mas para eles já era sem tempo trazer as transformações do planeta para dentro do cemitério.
Resolveram então transferir o grande amigo encarregado, caso ele aceitasse, ou derrubá-lo se não quisesse. Ele aceitou a transferência com os mesmos cargo e salário para o Cemitério Roxo. Acordo feito, vivas!
Dos administradores não houve quem sentisse remorso em ver os ultrapassados politiqueiros pelas costas. Ao contrário, os despediram em grande júbilo.
Entretanto, à vista de que o último bandido fora escorraçado, e entrado em meses a interinidade de Lupércio, o alto comando resolveu enviar outro administrador: um homem tenaz, com experiência de caserna, era um velho capitão de reserva da guarda municipal.
Tal decisão dos gestores da empresa estorvava os planos dos sepultadores. Estes desejavam a continuidade de Lupércio numa administração colegiada, com deliberações e ordenação compartilhada com o encarregado e líderes de plantão, cargos para os quais fundamentavam a pertinência das eleições.
Poucos dias foram suficientes para desestimularem o capitão daquela empreitada. Os coveiros executaram manobras de tamanha insubordinação que levaram o milico ancião a enfartar.
Uma ordenança, em austera representação do doente, recolheu sua bagagem de burocrata em duas caixinhas de papelão e não hesitou em arreganhar os dentes e proferir um breve discurso de indignação, uma reprimenda que ninguém atentou. Estavam exultantes com o poder da união. A alegria acumulou-se com a campanha reiniciada.
Seredião, o mais instruído do grupo todo, orientou sobre formulários, cédulas, escrutinadores, período de votação, atas e quorum.
Contra Macarrão, o orientador travou o primeiro grande e férvido debate ao vivo.
Este queria votação em único turno, com urnas abertas somente até o término da jornada de trabalho, enquanto o outro defendia dois turnos e período de votação maior, de forma a permitir a todos, inclusive aos plantonistas, o direito sagrado do sufrágio. 
Macarrão venceu. Seredião só conseguiu, para não ficar atrás, fixar a data das eleições.
Decorrido o período de candidaturas, destacados os escrutinadores e as regras, foram às eleições. Eram os mesmos candidatos da primeira e malograda tentativa para o cargo de encarregado, e outros quatro para os postos de líderes de plantão. Os mesmos truques de campanha e as mesmas técnicas populistas e demagógicas.
Às vésperas, no entanto, penitenciava-se Seredião pelo pecado de ter sugerido que o pleito devesse ocorrer no dia trinta do mês subseqüente. Vira depois a coincidência com seu plantão, do qual participavam maciçamente seus eleitores. Isso poderia comprometer o comparecimento nas urnas. Os outros certamente não teriam dificuldade em chegar à votação naquele dia.
Mais se arrependia porque a data que sugeriu fora objeto de veemente impugnação por parte de Macarrão, apenas para constrangê-lo totalmente no debate. Ingênuo! Seu adversário sabia da problemática em que se meteria, e por isso blefou.
Era o dia! Como se previa, o plantão não conseguiu votar, porque três sepultamentos atrasados enfileiraram-se na capela.
Finda a votação, em quinze minutos obtiveram o resultado: empate entre Burquinha e Seredião. Macarrão foi-se embora imediatamente após, aos gritos de “traidores, cês me pagam!”.
Burquinha, num rompante surpreendeu a todos. Levantou, expôs sua vida e os recentes episódios que o deixaram afamado, informou a gravidez inesperada de sua quarta esposa, renunciou a candidatura e declarou seu apoio a eleição de Seredião:
- Eu já tô cansado de cemitério. Não sei fazer mais nada e gosto dessa merda! Eu queria que cês fizessem o favor de apoiar o Seredião, esse “nó-cego”!  Porque ele é educado, trabalhador, bom coleguinha nosso e já mostrou que pode ser um bom encarregado! Eu vou apoiar ele por causa disso.
Seu Carlito se incumbiu de redigir um documento indicando Seredião e destacaram comissão para a posse do novo encarregado.
Levaram petição à administração com tenção de que fosse avalizada. Incrivelmente a eleição foi legitimada!
Seredião foi empossado a mês e meio e sua gestão correu como o esperado. Pelo menos no início.
Rápido vieram problemas que a euforia não pôde empanar.
O dia dos finados era próximo e urgia caiar os muros, carpir as campas abandonadas, cuidar do suprimento de materiais. Enfim, triplicar os trabalhos.
O novo encarregado tomou providências rígidas: escalonou diferentes plantões; proibiu as empreitas ilícitas; exigiu repartição obrigatória das caixinhas com todos.
Tudo sem as características docilidade e tolerância. Eis por que em tão pouco sua popularidade caiu vertiginosamente.
Ainda assim, com firmeza, dirigiu o pessoal... Até punir um funcionário, o Matinho, que de bêbado vinha cambaleante pelos becos.
O bêbado fez pior do que ter bebido. Disse palavrões aos transeuntes e mostrou suas partes a algumas mulheres que visitavam seus falecidos.
Seredião tentou abrandar a situação, mas não teve argumento contra as manifestações, menos ainda contra a visível embriaguez do coveiro. Era Matinho ou ele. Decidiu que fosse Matinho.
Arrumou um tremendo fuzuê. O grupo amotinou-se. Impuseram a mesmas condições que ao antecessor, neste caso, por traição e covardia.
“Bebedeira de hora certa, Matinho!” - Pensava Macarrão, que, com a deposição do eleito assumiu interinamente o posto. Registre-se que foi ele o mais inflamado a favor da penalidade a que Matinho foi justamente submetido. Foi também o líder da sublevação contra Seredião. E foi ele quem levou Matinho para o bar e pagou todas as bebidas que o doente ingeriu sofregamente.

terça-feira, 17 de abril de 2012

CRÔNICAS DOS COVEIROS DO CEMITÉRIO VERDE - CAPÍTULO XXIII - POLITIZANDO

XXIII - POLITIZANDO
Insuflados pelas idéias revolucionárias de Divina, os homens agora exigiam reparações profissionais.
É verdade que em qualquer empresa os colaboradores envidam comportamentos conflituosos ante as ocasiões de içar posições de maior privilégio e rentabilidade.
É instintivamente humano pugnar pela sobrevivência e obter reconhecimento, prestígio, poder. Tal luta leva a combates por vezes desleais e desfechos impiedosos em cenários de total isenção de escrúpulos.
A história mostra a inclinação desta morbidade pela configuração de escravaturas e servilismos que, vira e mexe são flagrados em escandalosos engodos de relações de trabalho, exploração de crianças e mulheres, no país e no mundo.
Não creio que há e nem poderia haver fortunas absolutamente lícitas nos dias de hoje, e duvido que tenha havido no passado. Sempre se operou uma lógica particular que justificasse modelos de espoliação, fosse por falácias de aparente finura, fosse pela exploração da força. A ética é mutante. Nossos tempos têm discurso de negação da opressão e impedimento da ação predatória.
Aliás, educação e legislações até certo ponto são limitadores desse prazer destrutivo, de contenção do poder predatório, um freio ao ímpeto ambicioso e arrivista.
Entretanto os efeitos éticos são modestos quando, às escâncaras, parte das fortunas ao nosso redor tem ilicitude nítida e descarada corrupção.
O venerando encarregado estava enfadado de seu labor e buscava firmar-se noutras atividades: comprou, a duras penas, dois carrinhos de cachorros quentes e outro de churros, enquanto sua mulher pôs-se a vender tecidos e modelinhos prêt-à-porter. Pretendia deixar a liderança e a vida mortuária. Assim, haveria vacância de sua nobre função.
No cemitério, à exceção de Retardatário e do grupo evangélico, todos se apeteceram.
Para o Retardatário, promoção significava responsabilidade e demandaria dedicação e tempo, o quê lhe proibiria os ganhos “ilícitos” individualmente. Os outros resistiam religiosamente à ambição, à cobiça e à traição. Menos Seredião.
Era propício aos sepultadores usarem o que aprenderam sobre processo político: candidatura, campanha e votação, posse, comando, insatisfação, reivindicação e impeachment.
Instaurou-se disputa pelo cargo e não se aceitaria nomeação sem legítima concorrência eleitoral.
Os candidatos inscritos: Macarrão, Burquinha e Seredião.
Realizadas as candidaturas, foram ao passo seguinte: a coalizão. Os candidatos buscaram alianças e apoio político nos diversos grupos.
Heterogêneos, cada um requeria estratégia específica: para o grupo dos menos ativos, menos esforços físicos; para os dos mais ativos, um sentido maior de responsabilidade e valor profissional; para os evangélicos, liberações para a prática do credo - inclusive para as reuniões em suas igrejas nos horários de expediente; para os bebedores de cerveja, cerveja grátis. Para os de pinga, pinga grátis...
Todas as táticas, em suas limitações, foram empregadas. Estava em jogo, afinal, noventa por cento de aumento e uma deliciosa sensação de mando.
Macarrão era meio apagado. Fora omisso em muitas posições recentes e, portanto estava longe de usufruir simpatia dos colegas. A campanha então exigia rápida contemporização.
Inúmeros episódios, alguns bem frescos na retina dos coveiros, demonstraram a tibieza de Macarrão. Retardatário tinha ganas de ferrá-lo, principalmente depois da visita da linda menina soropositivo, em frente de quem Macarrão o vexou.
Desentendimentos dos sepultadores com os visitantes, e entre eles próprios - não fosse a diplomacia do encarregado -, teriam desaguado em severas e danosas punições, quando a liderança do plantão era de Macarrão, vez que ele era flagrantemente a favor de exceções impraticáveis, em troca de caixinhas exclusivas, recebidas às escondidas dos beneficiários, e não dividida com os colegas. 
Burquinha estava discreto. Sua história pessoal, aliada à popularidade das aparições televisivas era o melhor de sua campanha eleitoral.
O terceiro, Seredião, conquanto apostasse nos votos certos dos evangélicos, mostrava-se mais tolerante com as facções que antipatizavam com o grupo do qual ele fazia parte, e com ele mesmo contendiam em prol dos adversários.
Viu que sua pertença ao grupo lhe era incômodo em alguns momentos. Então, passou a visitar os bares com a turma. Não bebia senão café, e logo se despedia.
Ao seu modo, cada um tentava conquistar o eleitorado. Enquanto orava com seus irmãos de fé, Seredião encontrava trechos bíblicos – coincidência?! – que falavam de liderança política: Moisés e a terra prometida; a sucessão de Josué; Davi em lugar de Saul; a sapiência de Salomão... Na parte dos erros pulava as páginas.
Os contendores receavam a postura e boas palavras do crente, temendo ainda o handicap da força de imagem do evangelho – será que, caso vencesse, ele não implantaria uma teocracia?
Macarrão, que não detinha o dom da fala, levava caronas para casa, se tornara bonachão, provedor e juiz de paz!
Burquinha apenas continuava tomando seus preparados etílicos, contava suas histórias e irreverências. Mas com maior freqüência entoava os hits mais-mais.
Passado primeiro mês da peleja, foi também o fim do pleito sem nenhum resultado. O encarregado decidiu permanecer no cargo e baldou os esforços dos candidatos.
Até ali imparcial, sentia-se feliz pelos desdobramentos políticos de Divina. No entanto acontecimentos o fizeram promulgar a decisão:
- Macacada, olha bem! Aqueles fiscais de merda da prefeitura tomaram meus carrinhos e interceptaram as sacolas da minha mulher. O prejuízo foi grande. O meu projeto deverá ficar para o ano que vem depois que tirar as porras dos alvarás que eles mandaram. Sendo assim, sinto pelos coleguinhas, mas eu devo ficar mais um tempo.
Voltaram ao mesmo ritmo de antes, como se nada tivesse acontecido ou como quem guarda as energias para a próxima oportunidade de combate... Que não tardaria a chegar.

domingo, 15 de abril de 2012

CRÔNICAS DOS COVEIROS DO CEMITÉRIO VERDE - CAPÍTULO XXII - O ÚLTIMO ADMINISTRADOR

XXII - O ÚLTIMO ADMINISTRADOR
A Providência tem seus mistérios!
Do massacre – que ainda hei de narrar - houve um homem salvo pela própria canalhice! O larápio oportunista foi o último administrador antes dos eventos fatídicos.
Fora admitido em lugar do demagogo que resistiu aos rogos do Porca. Aquela raposa não encontrou coro na nova formação política da empresa funerária, a qual, a pretexto da necessidade de uma direção moderna, aproveitou sua total incompetência para expurgá-lo de seus quadros.
O substituto, mais novo e não menos experimentado em politicagem, era também parente de alguém importante naquele pequeno sistema. Aceitou o cargo por saber das propinas que regavam a administração, as caixinhas dos coveiros e as indicações lucrativas de construtores e jardineiros - operários I e II.
De cara o malandro fixou porcentagem de tudo o que os trabalhadores ganhassem, fossem gorjetas ou outras entradas - coisa de quarenta por cento.
Fez isso astuciosamente durante uma cervejada, agradando a todos com sutilezas e piadas, conselhos e promessas. Da arrecadação, vendo-os alegremente tontos, alegou se tratar de um inovador fundo de cooperação para os próprios funcionários.
Na mesma noite em sua casa, o bandido contratou a aquisição de um automóvel novo por telefone, denunciando assim a verdadeira intenção dos fundos.
No dia seguinte à festiva bebedeira, porém, defumados no remorso, os subalternos desfizeram o acordo.
O tinhoso então mostrou o autoritarismo de que estava imbuído.
À suspeição de tudo e todos, fiscalizava de perto o que se recebia; retaliava os que não dividiam as rendas; humilhava os que se negavam. Chegou ao cúmulo de surrar um Jardineiro que o teria enganado na partição das rendas.
Sob ameaças e grosserias, a modos de coronel dava o tom da sua gestão. Não durou mais que dois meses a desgraça!
O encarregado reuniu os colegas, e por abaixo-assinado oficiaram o seu descontentamento.
Na mesma semana, em assembléia com agentes daqueles recursos humanos, conseguiram a deposição do chefete.
Como não bastasse, num conciliábulo elaboraram ações morais corretivas contra o bandido: delinearam seu percurso para casa e o emboscaram. Aplicaram-se a mais clássica sova.
Quando o infeliz ainda consciente estirou na calçada, cada sepultador aproximou o rosto, disse seu nome e endereço. Por fim, o encarregado sentenciou: “Somos nós seu desgraçado! Se tiver vingança contra qualquer um de nós, não vamos deixar barato! Isso aqui foi só um recado.” Desfechou o último golpe, um soco a macerar o nariz daquele diabo.
Esse último administrador, antes, tinha sido perverso por profissão. Foi quadrilheiro em roubos a bancos e joalherias, e, diz-se, já teria executado rivais a sangue frio.
Em realidade, ter aceitado a administração convinha ao esquecimento dos desafetos, significava sair do circuito, dar um tempo.
Mas como o hábito faz o monge, o dinheiro impediu a quietude do malfeitor.
Depois da expulsão, soube-se que o homem se convertera e fundara uma seita religiosa – já tinha inaugurado doze templos bastante freqüentados.
Ele apareceu no Cemitério Verde para operar cooptações; sem sucesso. Os coveiros se exaltaram e sua visita missionária quase lhe rendeu outro cacete, não fosse a prudente intervenção do encarregado.
A Providência tem realmente seus mistérios! O bandido foi salvo do massacre, e o cemitério, para suprir a vacância administrativa, chamou em caráter urgente o confuso, mas leal escriturário, Lupércio. Até o final, ele será o administrador interino. 

domingo, 8 de abril de 2012

CRÔNICAS DOS COVEIROS DO CEMITÉRIO VERDE - CAPÍTULO XX I - O ADMINISTRATIVO

XXI - O ADMINISTRATIVO
No passado o Cemitério Verde também foi uma empresa estatal, mas como o governo não conseguiu administrar bem suas atividades – por um rosário de motivos que prefiro calar -, o Verde e os outros cemitérios coloridos foram concedidos a empresários versados nas coisas da morte - portentos do capital com empresas em N negócios.
O quadro de funcionários tinha oitenta por cento do efetivo arrastado da época do funcionalismo. Daí alguns vícios e hábitos, resquícios de hábitos, cargos e “jeitinhos”.
Iumador passou a ser sepultador - embora ainda figure em alguns crachás desatualizados. Construtores e Jardineiros passaram a Operários I e II, mas não se apresentavam assim.
Administrador ficou administrador mesmo pela necessidade da imposição semântica do cargo. Oficial de administração mudou para escriturário ou datilógrafo, ou digitador, conforme a funcionalidade técnica do empregado. Empossar ficou admitir e destituir, demitir.
Os proventos viraram salários mais baixos: coisa de adequação de mercado.
Havia um administrativo, escriturário interessante no Cemitério Verde pela sua ativa personalidade. Era baixinho, gordo, cioso da longa e negra cabeleira encaracolada, tinha as pernas em estreito “O” mais altas do que o tronco, o que lhe conferia certa elegância.
A aspereza com que todos eram tratados dentro e fora da Necrópole intensificava a necessidade de formarem um grupo senão legítimo, ao menos coeso.
Lupércio, o administrativo, tinha trajetória acadêmica curiosa: fez um ano de cinema, dois de administração e outro de biblioteconomia; não concluiu o curso de inglês intensivo nem o de violão que tinha começado há sete anos.
Aos quarenta anos vivia essa tamanha indecisão vocacional, que mexia no seu humor. Tinha momentos de doçura e também de irritação, de incomunicabilidade e antipatia.
De regra, no entanto, era ferrenho defensor dos trabalhadores.
Certa feita tomou cerveja demais antes do almoço. A tontura o fez chafurdar em rancores contra o descaso com as funções do cemitério. Naquele dia foi infeliz!
Duas dondocas entraram na administração a reclamar que dois empregados (coveiros), brincando com uma lata de cal, mancharam suas calças.
Chamavam os sepultadores de burros, idiotas, filhos da mãe (quiseram dizer “da puta”!) e mais uns impropérios!
Lupércio não se conteve ante os xingamentos:
- Por que vocês não vão procurar o que fazer heim!? Suas cretinas! Os homens não são burros, idiotas ou isso aí que vocês disseram. Queria ver vocês trabalhando, produzindo alguma coisa, ao invés de ficarem nesta vidinha inútil de filhinha de papai... Quer saber? Vão para o diabo que as carreguem, suas ninfetinhas de zona!
Foi infeliz mesmo naquele dia! Umas das meninas era filha de ex-secretário de pasta do governo, justamente de assuntos regulatórios da morte, cuja influência não havia resfriado.
Lupércio só não foi demitido porque atingira período de estabilidade – uma das poucas condições tratadas na concessão dos cemitérios ao empresariado.
Deu o que fazer, no entanto, para o acordo não dissolver.
Foi humilhado ao ter que se retratar com as meninas publicamente por duas vezes: no gabinete do atual secretário, de frente às meninas perfiladas aos diretores da empresa - elas aproveitaram para incluí-lo na lista dos inúmeros qualificativos desonrosos que até então se restringiam apenas aos coveiros; e doutra vez no cemitério em frente à capela, quando se realizava velório com grandíssima afluência.
E para que não esquecesse, assinou advertência em cujo teor se comprovava suas ofensa e retratação. Recebeu, adicionalmente, gancho de uma semana com corte nos vencimentos.
Por fim, à vista de que a descrição do seu cargo permitia que o obrigassem à faxina em qualquer lugar da empresa, no retorno do gancho foi apenado com a transferência para o Cemitério Abóbora - literalmente do outro lado da cidade -, com a função única de varrição e limpeza das salas de velórios, capela e escritório.

RADAR COTIANO 07.04.12

quinta-feira, 5 de abril de 2012

CRÔNICAS DOS COVEIROS DO CEMITÉRIO VERDE - CAPÍTULO XX - IRREVERÊNCIAS

XX - IRREVERÊNCIAS
Uma mudança vinha se processando nos funcionários e a breve passagem de Divina pela administração catalisou a transformação.
Não obstante enxotada pelo quadro, deixou marcas indeléveis no espírito daquela gente.
Coisas como democracia, bandeiras de luta, autoconfiança, determinação e organização, haviam excitado os ânimos dos pobres homens, seus espíritos.
Despertou nos sepultadores certo gosto pela discussão de seus problemas – gosto veementemente negado quando se tratou de depô-la do cargo, já uma artimanha política.
Criou a idéia de apreciar a liderança. No quesito, a atenção convergiu para o encarregado empossado havia poucos meses, que exercia uma grande ascendência sobre todos.
Não sem motivos, pois era esperto, ágil, inteligente e conhecedor de todos os procedimentos legais e práticos para a execução dos trabalhos, com idade inferior a vinte e cinco anos.
Seu pragmatismo, ao passo que contagiante, era inimitável. Devia suas habilidades à misericórdia de Deus que lhe permitiu se formar um honesto companheiro em meio à vulnerabilidade social que herdara da família, esta nascida e crescida sem nenhum interesse pela educação e generosidade. Sua infância vivida no seio da maldade e da droga, não se extraviou de trilhar a escola formal tanto quanto pôde incólume e saudável.
Contava ainda a seu favor o fato de ter uma amizade com os subalternos; parentes antigos nos outros cemitérios coloridos – filiais da mesma empresa; morar próximo da maioria – dava caronas a muitos -, e de ter a autoridade natural, sem imposições.
Um jovem pai de família responsável, não menos um profissional competente e zeloso e um chefe ardiloso.
Os sepultadores começaram a valorizar efetivamente sua função. O discurso eletrônico de Burquinha muito os incentivou. Não se mostravam mais homens menores. Estavam mais asseados, consumiam menos álcool e ostentavam maior disposição e respeito próprio.
Notadamente, antes, quando conversavam com os visitantes, o faziam com temor e gaguejo; torciam os braços e pernas, olhavam para o chão ou para céu, evitando a superioridade dos olhos interlocutores.
Agora em vez disso, erguiam os seus olhos e se mantinham eretos, apontando o queixo, imprimindo firmeza na voz e na fala.
A primeira vez que se fez necessária a rigidez da auto-estima, foi contra um mal acostumado deputado.
Havia a proibição de entrada de veículos automotores nos sete cemitérios afiliados. Porém nas Necrópoles Verde, Azul e Amarela, essa determinação nunca foi seguida, graças aos sólidos privilégios dos mais abastados, a malandragem dos homens públicos e a conivência do alto comando.
Oficialmente, a exceção cabia apenas para deficientes, idosos ou pessoas comprovadamente carentes de saúde.
O novo caráter dos coveiros, posto à prova, não decepcionou.
Quando observaram a entrada do luxuoso automóvel de placa distinta, permitida pelo coveiro que fazia às vezes de porteiro, acorreram-no acreditando que ele tivesse sofrido pressão do eleito no veículo da municipalidade.
Confirmado que Nailson sofreu mesmo a suposta pressão, incontinenti, deram as mãos em inusitada corrente humana, interrompendo a passagem da excelência.
Tamanho alvoroço atraiu o encarregado que conferiu autoridade aos subalternos, endossando a atitude.
O político fez o motorista manobrar e sair sob protestos e promessa de revide, para depois entrar a pé pelo portão de pedestres. Os desdobramentos resultaram em nada. Não convinha à iminente campanha eleitoral.
A relação deste fato, outras vezes repetido, com o impressionante enaltecimento da auto-estima só fica clara quando nos lembramos das tantas ocasiões em que os sepultadores, mesmo com a razão, ouviram desaforos sem esboçar qualquer reação. Calavam porque se sentiam depreciados. Apenas coveiros.
Outras oportunidades surgiriam. Exemplo: um dia um enterro estava marcado para duas horas da tarde e os familiares do nobre falecido exigiam que o enterrassem ao meio dia – “Estamos no horário de almoço. A senhora faça o favor de voltar, acalmar seus parentes, porque somente às duas horas da tarde o falecido será enterrado. Obrigado!” – e viraram as costas, deixando a matrona coberta de jóias e desprazer, falando sozinha
Outro: quando um delegado mandava que enterrassem o bisavô quatro horas depois do horário marcado – “Lamento, se o senhor quiser enterrar seu parente mais tarde, deve voltar e pagar o velório por mais quatro horas. Obrigado, heim!” – responderam ao mandatário policial, que avançou nos homens em visível nervosismo, esbravejando:
- Vocês sabem com que estão falando? Eu sou delegado e posso pô-los na cadeia por desacato a autoridade...
Tranquilamente respondeu o encarregado:
- O senhor sabe com que está falando? Somos coveiros, e se o senhor colocar a gente na cana, um dia a gente sai. Mas se a gente colocar o senhor numa cova, o senhor só sai se gente exumar.

GRACIAS ANDINAS