terça-feira, 17 de abril de 2012

CRÔNICAS DOS COVEIROS DO CEMITÉRIO VERDE - CAPÍTULO XXIII - POLITIZANDO

XXIII - POLITIZANDO
Insuflados pelas idéias revolucionárias de Divina, os homens agora exigiam reparações profissionais.
É verdade que em qualquer empresa os colaboradores envidam comportamentos conflituosos ante as ocasiões de içar posições de maior privilégio e rentabilidade.
É instintivamente humano pugnar pela sobrevivência e obter reconhecimento, prestígio, poder. Tal luta leva a combates por vezes desleais e desfechos impiedosos em cenários de total isenção de escrúpulos.
A história mostra a inclinação desta morbidade pela configuração de escravaturas e servilismos que, vira e mexe são flagrados em escandalosos engodos de relações de trabalho, exploração de crianças e mulheres, no país e no mundo.
Não creio que há e nem poderia haver fortunas absolutamente lícitas nos dias de hoje, e duvido que tenha havido no passado. Sempre se operou uma lógica particular que justificasse modelos de espoliação, fosse por falácias de aparente finura, fosse pela exploração da força. A ética é mutante. Nossos tempos têm discurso de negação da opressão e impedimento da ação predatória.
Aliás, educação e legislações até certo ponto são limitadores desse prazer destrutivo, de contenção do poder predatório, um freio ao ímpeto ambicioso e arrivista.
Entretanto os efeitos éticos são modestos quando, às escâncaras, parte das fortunas ao nosso redor tem ilicitude nítida e descarada corrupção.
O venerando encarregado estava enfadado de seu labor e buscava firmar-se noutras atividades: comprou, a duras penas, dois carrinhos de cachorros quentes e outro de churros, enquanto sua mulher pôs-se a vender tecidos e modelinhos prêt-à-porter. Pretendia deixar a liderança e a vida mortuária. Assim, haveria vacância de sua nobre função.
No cemitério, à exceção de Retardatário e do grupo evangélico, todos se apeteceram.
Para o Retardatário, promoção significava responsabilidade e demandaria dedicação e tempo, o quê lhe proibiria os ganhos “ilícitos” individualmente. Os outros resistiam religiosamente à ambição, à cobiça e à traição. Menos Seredião.
Era propício aos sepultadores usarem o que aprenderam sobre processo político: candidatura, campanha e votação, posse, comando, insatisfação, reivindicação e impeachment.
Instaurou-se disputa pelo cargo e não se aceitaria nomeação sem legítima concorrência eleitoral.
Os candidatos inscritos: Macarrão, Burquinha e Seredião.
Realizadas as candidaturas, foram ao passo seguinte: a coalizão. Os candidatos buscaram alianças e apoio político nos diversos grupos.
Heterogêneos, cada um requeria estratégia específica: para o grupo dos menos ativos, menos esforços físicos; para os dos mais ativos, um sentido maior de responsabilidade e valor profissional; para os evangélicos, liberações para a prática do credo - inclusive para as reuniões em suas igrejas nos horários de expediente; para os bebedores de cerveja, cerveja grátis. Para os de pinga, pinga grátis...
Todas as táticas, em suas limitações, foram empregadas. Estava em jogo, afinal, noventa por cento de aumento e uma deliciosa sensação de mando.
Macarrão era meio apagado. Fora omisso em muitas posições recentes e, portanto estava longe de usufruir simpatia dos colegas. A campanha então exigia rápida contemporização.
Inúmeros episódios, alguns bem frescos na retina dos coveiros, demonstraram a tibieza de Macarrão. Retardatário tinha ganas de ferrá-lo, principalmente depois da visita da linda menina soropositivo, em frente de quem Macarrão o vexou.
Desentendimentos dos sepultadores com os visitantes, e entre eles próprios - não fosse a diplomacia do encarregado -, teriam desaguado em severas e danosas punições, quando a liderança do plantão era de Macarrão, vez que ele era flagrantemente a favor de exceções impraticáveis, em troca de caixinhas exclusivas, recebidas às escondidas dos beneficiários, e não dividida com os colegas. 
Burquinha estava discreto. Sua história pessoal, aliada à popularidade das aparições televisivas era o melhor de sua campanha eleitoral.
O terceiro, Seredião, conquanto apostasse nos votos certos dos evangélicos, mostrava-se mais tolerante com as facções que antipatizavam com o grupo do qual ele fazia parte, e com ele mesmo contendiam em prol dos adversários.
Viu que sua pertença ao grupo lhe era incômodo em alguns momentos. Então, passou a visitar os bares com a turma. Não bebia senão café, e logo se despedia.
Ao seu modo, cada um tentava conquistar o eleitorado. Enquanto orava com seus irmãos de fé, Seredião encontrava trechos bíblicos – coincidência?! – que falavam de liderança política: Moisés e a terra prometida; a sucessão de Josué; Davi em lugar de Saul; a sapiência de Salomão... Na parte dos erros pulava as páginas.
Os contendores receavam a postura e boas palavras do crente, temendo ainda o handicap da força de imagem do evangelho – será que, caso vencesse, ele não implantaria uma teocracia?
Macarrão, que não detinha o dom da fala, levava caronas para casa, se tornara bonachão, provedor e juiz de paz!
Burquinha apenas continuava tomando seus preparados etílicos, contava suas histórias e irreverências. Mas com maior freqüência entoava os hits mais-mais.
Passado primeiro mês da peleja, foi também o fim do pleito sem nenhum resultado. O encarregado decidiu permanecer no cargo e baldou os esforços dos candidatos.
Até ali imparcial, sentia-se feliz pelos desdobramentos políticos de Divina. No entanto acontecimentos o fizeram promulgar a decisão:
- Macacada, olha bem! Aqueles fiscais de merda da prefeitura tomaram meus carrinhos e interceptaram as sacolas da minha mulher. O prejuízo foi grande. O meu projeto deverá ficar para o ano que vem depois que tirar as porras dos alvarás que eles mandaram. Sendo assim, sinto pelos coleguinhas, mas eu devo ficar mais um tempo.
Voltaram ao mesmo ritmo de antes, como se nada tivesse acontecido ou como quem guarda as energias para a próxima oportunidade de combate... Que não tardaria a chegar.

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GRACIAS ANDINAS