XXVI – APARIÇÃO AUTÊNTICA
Na tarde
subseqüente à redenção de Laurenciano, outro acontecimento engrossaria o
repertório de piadas dos sepultadores.
Duas
senhoras estavam a passear pelos jardins da Necrópole. A mais nova, com mais de
sessenta e cinco, como uma pajem vinha conduzindo a mais velha, regozijando-se
da diferença de idade, cuja juventude a caridade lhe permitia exibir.
De
instante em instante alastrava o olhar à procura de espectadores, consertando o
penteado, estampando um tênue sorriso pio.
Tinham
visitado um conhecido no repouso eterno e agora passeavam distraídas com as
lembranças do falecido. Cada uma com suas lembranças, ambas com muita saudade.
Passavam
pela quarta vez em frente da colossal estátua de São Jorge a espetar
tradicionalmente um dragão que se esvaia dum sangue de bronze em alto relevo:
“Linda estátua não é Hemengarda?”, pela quarta vez disse a jovem velha para a
amiga mais experiente.
Mais
alguns passos e escutaram um gemido cavernoso, fantasmagórico, longo, num
crescendo, bem grave; não se deixaram abalar de pronto, fazendo de conta que
nada ouviram.
Durou
pouco o descanso: uma silhueta negra e hercúlea – agigantada mesmo! – surgiu de
dentro do subterrâneo do túmulo detrás do São Jorge.
Esmeralda
a babá, saiu em disparada deixando tudo para trás: a vaidade, o cansaço e a
amiga velhota.
Matusalém
vinha bem atrás, fazia o que considerava correr, mas sem os gritos retumbantes da
outra, até que exausta estacou, arregalou os olhos e desfaleceu.
Enquanto,
esbaforida, Esmeralda contava ao administrativo Lupércio o que lhes ocorrera,
eis que estaciona no balcão o Geraldo, mais conhecido como Geraldão, um
pitoresco negro velho de dimensões sobre-humanas.
Olhou
para a queixosa e tentou lhe explicar que não quis assustar ninguém. Em vão. A
mulher não lhe deu atenção - tinha problemas em falar com pessoas não brancas e
se mostrava melindrada quando essa particularidade somenos era confundida com
racismo.
Geraldão
foi pugilista amador até trinta anos antes. Conheceu os pesos-pesados da velha-guarda,
ícones do esporte, e treinou luvas com alguns.
Numa
noite, tendo-se liberado do trabalho mais cedo, deu com a esposa na sua cama
com um suposto amigo da casa. Matou o canalha de tanta porrada e partiu os
ossos da traidora. Disseram que, desde então, a coitada não andou mais até o
fim da vida.
Contudo,
de tanto amor que um dia tivera pela amásia, consumido pelo remorso e desespero,
tratou de providenciar a própria morte: tomou um galão de gasolina; não morreu,
queimou o esôfago, danificou o cérebro e perdeu a habilidade da fala. Agora
emitia o som grave e ininteligível com muito custo.
Para se
fazer compreensível grunhia pausadamente, com paciência, até que descobrissem o
núcleo de sua mensagem.
Tendo
Lupércio como intérprete, Esmeralda – sem o rebolado de antanho – sorria
amarelo, considerando o cômico da situação.
E a
outra mais velha, Hemengarda, deveu o desfalecimento ao sono, pois confirmara a
humanidade da aparição tão logo percebeu no negro que a encalçava, um antigo
caso de mocidade. Aproveitou a ausência da amiga enfadonha e dormitou para
descansar.
Esmeralda
a cansava por não aceitar tão bem, como nós, o inevitável envelhecimento das
células. Ainda bem que só a via duas vezes por ano!
Também
porque o saudoso falecido inspirador de tantas lembranças foi esposo de
Esmeralda e secretamente seu homem, até a que morte separou os três e diluiu a
convivência íntima e habitual que tinham.