domingo, 27 de maio de 2012

CRÔNICAS DOS COVEIROS DO CEMITÉRIO VERDE - CAPÍTULO XXVI - APARIÇÃO AUTÊNTICA


XXVI – APARIÇÃO AUTÊNTICA
Na tarde subseqüente à redenção de Laurenciano, outro acontecimento engrossaria o repertório de piadas dos sepultadores.
Duas senhoras estavam a passear pelos jardins da Necrópole. A mais nova, com mais de sessenta e cinco, como uma pajem vinha conduzindo a mais velha, regozijando-se da diferença de idade, cuja juventude a caridade lhe permitia exibir.
De instante em instante alastrava o olhar à procura de espectadores, consertando o penteado, estampando um tênue sorriso pio.
Tinham visitado um conhecido no repouso eterno e agora passeavam distraídas com as lembranças do falecido. Cada uma com suas lembranças, ambas com muita saudade.
Passavam pela quarta vez em frente da colossal estátua de São Jorge a espetar tradicionalmente um dragão que se esvaia dum sangue de bronze em alto relevo: “Linda estátua não é Hemengarda?”, pela quarta vez disse a jovem velha para a amiga mais experiente.
Mais alguns passos e escutaram um gemido cavernoso, fantasmagórico, longo, num crescendo, bem grave; não se deixaram abalar de pronto, fazendo de conta que nada ouviram.
Durou pouco o descanso: uma silhueta negra e hercúlea – agigantada mesmo! – surgiu de dentro do subterrâneo do túmulo detrás do São Jorge.
Esmeralda a babá, saiu em disparada deixando tudo para trás: a vaidade, o cansaço e a amiga velhota.
Matusalém vinha bem atrás, fazia o que considerava correr, mas sem os gritos retumbantes da outra, até que exausta estacou, arregalou os olhos e desfaleceu.
Enquanto, esbaforida, Esmeralda contava ao administrativo Lupércio o que lhes ocorrera, eis que estaciona no balcão o Geraldo, mais conhecido como Geraldão, um pitoresco negro velho de dimensões sobre-humanas.
Olhou para a queixosa e tentou lhe explicar que não quis assustar ninguém. Em vão. A mulher não lhe deu atenção - tinha problemas em falar com pessoas não brancas e se mostrava melindrada quando essa particularidade somenos era confundida com racismo.
Geraldão foi pugilista amador até trinta anos antes. Conheceu os pesos-pesados da velha-guarda, ícones do esporte, e treinou luvas com alguns.
Numa noite, tendo-se liberado do trabalho mais cedo, deu com a esposa na sua cama com um suposto amigo da casa. Matou o canalha de tanta porrada e partiu os ossos da traidora. Disseram que, desde então, a coitada não andou mais até o fim da vida.
Contudo, de tanto amor que um dia tivera pela amásia, consumido pelo remorso e desespero, tratou de providenciar a própria morte: tomou um galão de gasolina; não morreu, queimou o esôfago, danificou o cérebro e perdeu a habilidade da fala. Agora emitia o som grave e ininteligível com muito custo.
Para se fazer compreensível grunhia pausadamente, com paciência, até que descobrissem o núcleo de sua mensagem.
Tendo Lupércio como intérprete, Esmeralda – sem o rebolado de antanho – sorria amarelo, considerando o cômico da situação.
E a outra mais velha, Hemengarda, deveu o desfalecimento ao sono, pois confirmara a humanidade da aparição tão logo percebeu no negro que a encalçava, um antigo caso de mocidade. Aproveitou a ausência da amiga enfadonha e dormitou para descansar.
Esmeralda a cansava por não aceitar tão bem, como nós, o inevitável envelhecimento das células. Ainda bem que só a via duas vezes por ano!
Também porque o saudoso falecido inspirador de tantas lembranças foi esposo de Esmeralda e secretamente seu homem, até a que morte separou os três e diluiu a convivência íntima e habitual que tinham.

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