terça-feira, 19 de junho de 2012

AS CRÔNICAS DOS COVEIROS DO CEMITÉRIO VERDE - CAPÍTULO XXVII - A ATRAÇÃO DOS BRUTOS


Que os brutos também amam é notório. O que respira, ama.
Talvez seja novo dizer que eles, os brutos, muitas vezes são mais amados do que amam - que não se convençam!
Uma porção grande de gente tem irremediável inclinação pelo que é bruto.
Talvez porque o bruto, o tosco, o rústico, o inculto, seja animalesco e mais próximo da natureza dos instintos, que a educação, na tentativa de sofisticar ou asfixiar, nalguns fracassa.
O que é animal come quando tem fome e bebe quando tem sede, trepa se tiver vontade e xinga para extravasar, se embevecendo com as felicidades corriqueiras dos cotidianos à toa.
Todavia, há os de natureza corrupta. Por submissão, desvio ou perversão, existem os que gostam de sofrer física e psicologicamente, encontrando na dor algum sentido de vida.
Como acontecia ao intérprete de Geraldo, Lupércio, que mantinha um caso extraconjugal com uma dona definitivamente masoquista. Ela exigia apanhar sem ficção, socos e chutes, ao passo que era servil como uma escrava, ou melhor, uma gueixa.
Retocava a toalete, uma mulher jovem e enlutada. Fitava no espelho descascado do banheiro cemiterial, esforçando-se para prantear o cadáver do marido, sem sequer conseguir umedecer os olhos.
Laurenciano, entretido com um livro de crônicas, caminhava alheio ao ambiente.
Depois do especial encontro consigo mesmo, Zumbizão obrou imediatas práticas, dentre as quais a leitura. Devorava como traça dos livros o âmago de qualquer autor, lendo-lhe a alma, confabulando tête-à-tête, checando a intenção de cada parágrafo, deleitando-se com cada construção particular.
Ao vislumbrá-lo, a viuvinha derreteu-se num choro tão fundo e alto, em tão dissimulado soluço que quebrou incontinenti a compenetração do coveiro.
Ele estacionou na batente sobraçando o livro, com a página marcada por uma espátula. Contemplava a bela perturbada.
Ofereceu: “A senhora precisa de alguma coisa? Quer um copo d’água ou outra coisa?”
A viúva pusilânime aproximou-se e recostou a cabeça em seu ombro, auscultou seu coração – batia forte: “Gostaria de tomar uma bebida... Tem algum lugar discreto por aqui? Você não quer ir comigo?”
Acomodados nos balcão de uma lanchonete - duas ruas além do muro alto do cemitério, discreto, como queria a viuvinha – pediam ao Mané que trouxesse uma água tônica para Laurenciano e um conhaque para a viúva. Tinham saído com tamanha discrição esgueirando-se pelos túmulos, ocultando-se entre as árvores sem chamar a atenção, que o enterro do corpo exangue do cônjuge correu sem que dessem falta da viúva.
Colóquios postos, a belezinha se recompunha dignamente insuspeita da viuvez. Na realidade não julgariam senão como garota no trajeto da balada, ou vinda duma dessas festas em que vestem apenas escuro.
- Você é casado, Laurenciano? Perguntava a mulher, intercalando as palavras com sensuais estremecimentos dos lábios reluzentes de conhaque. Reluzia-os com charmoso malabarismo dos beiços imersos no copo e breve retenção do líquido na boca semicerrada.
A imagem mexia com Laurenciano que não conseguia apartar-se da atração física que a jovem vestida de negro exercia. Dos cabelos alourados, médios para longos, o eflúvio perfumado impregnara o fundo dos olhos do sepultador. “Não, não sou...”
- Eu fui casada com o Beckmhann durante cinco anos. Ele era educado, galanteador, responsável... Fazia todos os gostos, mas... – hesitou brevemente - não me completava. Era mais pai do que homem para mim. O que eu quisesse era só pedir: carros, móveis, jóias, qualquer coisa, mas não me satisfazia, você entende? Deve entender.
Neste momento a fêmea segurou-lhe uma das mãos, acariciando os dedos da outra.
Laurenciano não queria, mas a conversa na interpretação daquela voz o excitava: “Sim, entendo.” Não queria porque a recente responsabilidade adquirida o condenava.
- Escuta! É meu coração batendo. Mas não estou triste. Estou até feliz; estou quase exultante. Vou querer outro conhaque e você? Tome um também, temos motivos para bebermos. Que horas você larga o cemitério, Laurenciano? Não gostaria dar uma volta comigo, pra conversarmos mais um pouco? Está sendo bom falar contigo!
Combinaram a hora. Pontualmente, um moderno automóvel verde abacate parou na ruela da lanchonete. Laurenciano que o esperava, correu até ele. A porta se abriu, a loura envergava um vestido cintilante e um acessório esbranquiçado enorme, dependurado no pescoço: “Entre Laurenciano. Você dirige” – ordenou, saltando para o banco de passageiro.
A louraça ia ditando o trajeto. Chegaram no prédio de luxo, na nobreza da cidade. O portão se abriu. Entraram num elevador que os deixou à entrada de um saguão de piso xadrez. Ambos mudos. Laurenciano automatizado seguiu os passos da formosa silhueta feminina.
Ela o conduziu para o interior do apartamento e sem dizer um som, despiu-se e posicionou-se de quatro no carpete felpudo.
Laurenciano, instintivamente, se conduziu, ajoelhou-se, abriu as calças e penetrou a mulher. No mesmo momento ela danou a gritar, a dar altos gemidos, dizer palavrões e arranhar o carpete. Loucura e prazer!
Repentinamente gritou para parar como uma dona faz ao cão; ergueu-se, o conduziu a outro compartimento da moradia. Arrancou-lhe as vestes. Abriu um armário embutido e sacou de um instrumento entre tantos. Entregou-lhe nas mãos, ajoelhou-se e instruiu que a castigasse alternando a felação com os insistentes rogos de punição.
Foram chibatadas nas costas e nas nádegas... Ela pedia que a machucasse. Os estampidos ecoavam por todo o enorme apartamento.
Usaram algemas e outros equipamentos de dor e submissão, tendo ao final de cada sessão uma escandalosa trepada.
De manhã, Laurenciano acordou só num colchão gigante e redondo, com amargo de arrependimento e estupefação.
Levantou-se e colocou as roupas, saiu do prédio às pressas sem que ninguém o pudesse interceptar. Entrou num ônibus em caminho de sua casa – não conseguiria trabalhar.
Tentando achar a consciência esfregou violentamente o rosto. Esbarrou o cotovelo num volume no bolso da camisa. Um envelope continha incrível soma de dinheiro - mais de quatro mil -, e um bilhete: “Foi bom! Nunca me procure. Se eu precisar, sei onde te encontrar.”
Nunca mais o procurou. O coveiro logo esqueceu sua fisionomia. Guardou na alma, no entanto, a complicada experiência.

GRACIAS ANDINAS