quarta-feira, 26 de outubro de 2011

MENINA-MOÇA-MULHER

Dalém da crueldade e das lamúrias do homem;
Das taras e simplicidades vãs do planeta;
Do entorno e do mundo prêt-à-porter;
No centro do corrupio das tormentas,
Acordada, dormes.

Noutro espaço descortinas mundos não visíveis,
Inatingíveis, improváveis...
No desvelo da vigília do avesso
Buscas o algo que aqui não há.

Assim, na ventriloquia de tuas consortes imaginárias,
Feéricas e épicas,
Vorazes, bonitas, insanas,
Energizas a alma e os músculos!

Não desperte, durma.
Serena, plácida, silenciosa...

Durma que o tempo passará.
Repouse - que é a tua distinção,
Que não ofusca nossos corpos diáfanos, frágeis...

Sonhe comigo, me introduza no teu mundo translúcido,
Nas tuas experiências orgíacas, nos teus projetos,
Nas notas do teu solfejo matutino, que entoas rigorosamente igual todos os dias, quando apareces terrena!

Cante, menina linda, cante!
O canto azul do céu gris,
Folha de árvore frondosa em sequidão de cerrado.
É o gorjeio da própria vida!
Durma e cante, menina linda!

Não desperte.
Intacto, eu peço que fique o casulo de paz que te protege,
E incessante seja a seiva floral que te sustenta.

Não desperte, cante.
Segue vicejando,
Sê forte, pois o entorno cruel das lamúrias não cessa...

Segue firme teu passo bambo equilibrado,
Que as taras e sutilezas vãs,
Torvelinhos são sempre...

Nos entremeios do prazer, porém, toma cuidado!
Toma muito cuidado!
Cuida que o amor engana em existir
E arrebata como besta-fera indefensável.

E arrasta em valsa macabra aos que erram as escolhas,
Esfarrapa sonhos,
Despedaça fantasias,
Afoga em mágoas, asfixia em rancores, desespera em amarguras...
Lança na singularidade toda razão.

Assim durma, cante; mas se acautele dos homens maus, meu anjo!

domingo, 9 de outubro de 2011

CRÔNICAS DOS COVEIROS DO CEMITÉRIO VERDE - XIV - ASCENSÃO DE UMA MULHER

Tudo o que é bom e belo necessariamente lembra a mulher! Posto que seja oprimida e desprezada na sua magnitude e no seu resplendor, conserva absoluta e vigorosamente o viço da beleza, o arquétipo da humanidade, caso esta fosse complacente e generosa!
A ascensão ao posto de administradora por uma senhora, digo, uma mulher jovem – senhora é por força do cargo, o mais alto do perímetro -veio dar novo alento aos empregados.
Uma das poucas, senão a primeira mulher responsável por tantos homens, tratando de um serviço inusitado para si, em si era igualmente inusitado para os funcionários.
Uma boa dose de machismo e a particular percepção da impropriedade do trabalho para uma moça foram complicadores da aceitação da mandatária.
Afinal, à mulher associavam apenas a gentileza, educação, fineza, sociabilidade, faceirice; umas pitadas de futilidade, além do que - é claro! - o sexo. Isso, evidentemente, era a principal coisa para o que as mulheres serviam - pensavam nossos sofridos personagens.
A teoria dos funcionários não vingou. A mulher tinha uma fibra incontestável!
Com uma vivência política na militância aguerrida voltada para a prática, demonstrou a que veio na primeira reunião, já no primeiro dia de trabalho. 
- Olá rapazes! Meu nome é Divina, mas só o nome, porque eu sou de carne, ossos e nervos, e, segundo a Santa Amada Puta Igreja, tenho também alma...
Em pouco mais de uma hora, Divina criara a desconcentração necessária para sondar todos os problemas, implantar as soluções cabíveis e impulsionar a mola propulsora do homem: o pensamento.
Toda solução era discutida, fosse para melhoria dos expedientes ou problemas individuais dos funcionários.
Não havia dúvida: estava implantada a democracia cemiterial, que em poucos meses viria a mostrar sua faceta negativa.
Não que eu seja autoritária – pode parecer clara uma leve tendência antidemocrática no que vou falar, mas convenhamos: a lentidão dos eternos protocolos, reuniões incessantes - até para discutir cutículas encravadas; o descontrole da noção de mandante e subordinados... Ora, a necrópole não é um país nem um partido político, menos ainda um centro acadêmico.
Ela precisava ser limpa, os sepultamentos e exumações deviam ser feitos, tudo conforme os regulamentos prescreviam para a segurança e higiene, diariamente. E era feito dentro de um esquema rígido que existe em qualquer estrutura hierarquizada.
Mas, continuando: por enquanto tudo uma maravilha! Divina era tratada como redentora do povo, cheia de paparicadas; cercada por um bando de fás que a incensavam ininterruptamente, com todos os louvores que pudessem fazer.
Certo dia, durante outra reunião – a terceira da semana -, assuntos novos foram pautados e dentre eles a supressão das caixinhas que os sepultadores ganhavam ao final de cada enterro. Pronto! Estava aberta uma ferida muito dolorida!
Sem caixinhas os salários eram imprestáveis. Com elas a remuneração era de bom complemento.
Mas não, “a caixinha, companheiros, é mutiladora da energia moral dos trabalhadores. Ela é conformista, humilhante. Ao invés de receberem caixinhas ou gorjetas, nós devemos lutar por melhores condições de trabalho, levantar nossas bandeiras de luta por melhores salários e exigir nossa participação nas decisões mais amplas da empresa...” blá, blá, blá... – o mesmo discurso anacrônico de uma esquerda irritante e distante daquele pessoal, como qualquer astro celeste.
A popularidade de Divina foi decaindo meteoricamente até se tornar oposição e depois, pura antipatia, aversão visceral a seu discurso panfletário e a sua voz.
Desavisada, insistiu na formação política de seus representados, esquecendo-se, no entanto, de realizar uma pesquisa de opinião.
Vertiginosamente a esqueceram. Nas rodas de pagode do botequim, nos churrascos domésticos, nas reuniões familiares, nas celebrações de casamento e batizado, em tudo já não era mais convidada.
No trabalho, durante o expediente, já ninguém adentrava ao escritório para bajulações de costume ou para conversas e chistes habituais.
Nas reuniões a apatia tornou-se o modo principal como participavam, quando as freqüentavam, obrigatoriamente por convocação.
Bastou que além de intrometer-se no tema sagrado das caixinhas, ela os lembrasse das eleições oficiais daquele ano, para definitivamente ser alijada do companheirismo dos homens. 
Ela não resistiu ao ostracismo que a impuseram. Demitiu-se nove meses depois de uma bonita gestação, abortada.
Da experiência, contudo, restou enorme respeito pelas coisas que Divina inoculou em seus corações.
Aquela nordestina de raça e de práticas explicitamente democráticas!
Coloco aqui, data vênia, minha ressalva: mesmo na democracia existem líderes com séria determinação para o poder. E o que muitas vezes parece ser voluntarioso não raras vezes pode ser quase autoritário.
Divina vinha de grupos extremistas, negócios paramilitares além das fronteiras, portanto sua formação era miliciana e sua ideologização era contundente, de cima para baixo como um bate-estaca.
Não abria mão de nenhum ardil para aderir mais conscritos a sua causa revolucionária. A amizade era só mais um meio de cooptação. As pessoas e as coisas tinham importância relativa.
À vista do manifesto desinteresse pelos altos assuntos que propunha, ela começou, de certa forma, a hostilizar os que sincera e francamente se opunham aos temas debatidos.
Corte no plantão, ameaça de advertência por desídia e modificações de horários foram alguns expedientes usados por Divina para velar a raiva que sentia de sua frustrada administração de política conceitual.
Mas, unidos e silentes, os sepultadores contrários às medidas propostas, tacitamente submeteram Divina ao mais relevante desprezo e isolamento.
Ela foi vencida. Foi-se embora.
Não obstante tenha servido à dialética: os homens mudaram.

GRACIAS ANDINAS