domingo, 9 de outubro de 2011

CRÔNICAS DOS COVEIROS DO CEMITÉRIO VERDE - XIV - ASCENSÃO DE UMA MULHER

Tudo o que é bom e belo necessariamente lembra a mulher! Posto que seja oprimida e desprezada na sua magnitude e no seu resplendor, conserva absoluta e vigorosamente o viço da beleza, o arquétipo da humanidade, caso esta fosse complacente e generosa!
A ascensão ao posto de administradora por uma senhora, digo, uma mulher jovem – senhora é por força do cargo, o mais alto do perímetro -veio dar novo alento aos empregados.
Uma das poucas, senão a primeira mulher responsável por tantos homens, tratando de um serviço inusitado para si, em si era igualmente inusitado para os funcionários.
Uma boa dose de machismo e a particular percepção da impropriedade do trabalho para uma moça foram complicadores da aceitação da mandatária.
Afinal, à mulher associavam apenas a gentileza, educação, fineza, sociabilidade, faceirice; umas pitadas de futilidade, além do que - é claro! - o sexo. Isso, evidentemente, era a principal coisa para o que as mulheres serviam - pensavam nossos sofridos personagens.
A teoria dos funcionários não vingou. A mulher tinha uma fibra incontestável!
Com uma vivência política na militância aguerrida voltada para a prática, demonstrou a que veio na primeira reunião, já no primeiro dia de trabalho. 
- Olá rapazes! Meu nome é Divina, mas só o nome, porque eu sou de carne, ossos e nervos, e, segundo a Santa Amada Puta Igreja, tenho também alma...
Em pouco mais de uma hora, Divina criara a desconcentração necessária para sondar todos os problemas, implantar as soluções cabíveis e impulsionar a mola propulsora do homem: o pensamento.
Toda solução era discutida, fosse para melhoria dos expedientes ou problemas individuais dos funcionários.
Não havia dúvida: estava implantada a democracia cemiterial, que em poucos meses viria a mostrar sua faceta negativa.
Não que eu seja autoritária – pode parecer clara uma leve tendência antidemocrática no que vou falar, mas convenhamos: a lentidão dos eternos protocolos, reuniões incessantes - até para discutir cutículas encravadas; o descontrole da noção de mandante e subordinados... Ora, a necrópole não é um país nem um partido político, menos ainda um centro acadêmico.
Ela precisava ser limpa, os sepultamentos e exumações deviam ser feitos, tudo conforme os regulamentos prescreviam para a segurança e higiene, diariamente. E era feito dentro de um esquema rígido que existe em qualquer estrutura hierarquizada.
Mas, continuando: por enquanto tudo uma maravilha! Divina era tratada como redentora do povo, cheia de paparicadas; cercada por um bando de fás que a incensavam ininterruptamente, com todos os louvores que pudessem fazer.
Certo dia, durante outra reunião – a terceira da semana -, assuntos novos foram pautados e dentre eles a supressão das caixinhas que os sepultadores ganhavam ao final de cada enterro. Pronto! Estava aberta uma ferida muito dolorida!
Sem caixinhas os salários eram imprestáveis. Com elas a remuneração era de bom complemento.
Mas não, “a caixinha, companheiros, é mutiladora da energia moral dos trabalhadores. Ela é conformista, humilhante. Ao invés de receberem caixinhas ou gorjetas, nós devemos lutar por melhores condições de trabalho, levantar nossas bandeiras de luta por melhores salários e exigir nossa participação nas decisões mais amplas da empresa...” blá, blá, blá... – o mesmo discurso anacrônico de uma esquerda irritante e distante daquele pessoal, como qualquer astro celeste.
A popularidade de Divina foi decaindo meteoricamente até se tornar oposição e depois, pura antipatia, aversão visceral a seu discurso panfletário e a sua voz.
Desavisada, insistiu na formação política de seus representados, esquecendo-se, no entanto, de realizar uma pesquisa de opinião.
Vertiginosamente a esqueceram. Nas rodas de pagode do botequim, nos churrascos domésticos, nas reuniões familiares, nas celebrações de casamento e batizado, em tudo já não era mais convidada.
No trabalho, durante o expediente, já ninguém adentrava ao escritório para bajulações de costume ou para conversas e chistes habituais.
Nas reuniões a apatia tornou-se o modo principal como participavam, quando as freqüentavam, obrigatoriamente por convocação.
Bastou que além de intrometer-se no tema sagrado das caixinhas, ela os lembrasse das eleições oficiais daquele ano, para definitivamente ser alijada do companheirismo dos homens. 
Ela não resistiu ao ostracismo que a impuseram. Demitiu-se nove meses depois de uma bonita gestação, abortada.
Da experiência, contudo, restou enorme respeito pelas coisas que Divina inoculou em seus corações.
Aquela nordestina de raça e de práticas explicitamente democráticas!
Coloco aqui, data vênia, minha ressalva: mesmo na democracia existem líderes com séria determinação para o poder. E o que muitas vezes parece ser voluntarioso não raras vezes pode ser quase autoritário.
Divina vinha de grupos extremistas, negócios paramilitares além das fronteiras, portanto sua formação era miliciana e sua ideologização era contundente, de cima para baixo como um bate-estaca.
Não abria mão de nenhum ardil para aderir mais conscritos a sua causa revolucionária. A amizade era só mais um meio de cooptação. As pessoas e as coisas tinham importância relativa.
À vista do manifesto desinteresse pelos altos assuntos que propunha, ela começou, de certa forma, a hostilizar os que sincera e francamente se opunham aos temas debatidos.
Corte no plantão, ameaça de advertência por desídia e modificações de horários foram alguns expedientes usados por Divina para velar a raiva que sentia de sua frustrada administração de política conceitual.
Mas, unidos e silentes, os sepultadores contrários às medidas propostas, tacitamente submeteram Divina ao mais relevante desprezo e isolamento.
Ela foi vencida. Foi-se embora.
Não obstante tenha servido à dialética: os homens mudaram.

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