quinta-feira, 29 de setembro de 2011

CRÔNICAS DOS COVEIROS DO CEMITÉRIO VERDE - XIII - BURQUINHA – O HERÓI

Burquinha, depois dos minutos de fama, celebridade instantânea e transitória, não se aparentou metediço ou pomposo.
Tendo destruído num breve discurso a mística agourenta do coveiro, também não hasteou bandeiras de luta. Nada de solene agravou seu comportamento.
Continuou na faina normalmente sem que o aparecimento na televisão para um público tão grande modificasse seu jeito brejeiro. A fama, ou pelos menos seus 15 minutos não o exaltaram.
Inveterado, continuou com as libações de álcool no bar do Tonhão, as zangas, as brigas.
Bem lá no fundinho, a gente sabe que a indiferença não empanava o orgulho que sentia do seu feito.
Ele se orgulhava. Felicitava-se pela notoriedade, pelo prestígio, mas não como o que pudesse lhe propiciar alguma vantagem política ou econômica da sua imagem. Era orgulho ingênuo!
Não era a primeira vez que tinha feito algo de grandioso por seus companheiros.
No passado fez outras tantas, nada mudou, como estava convicto de que o seu desabafo televisivo igualmente não mudaria. Permaneceriam ganhando más pagas e o juízo com lhes julgavam estaria inalterado.
A memória do desinteressante é ainda mais pálida quando arremessada no turbilhão de nulidades, erigidas diariamente nas mídias.
O preconceito é obra secular, e mudar conceitos demanda contínuas gerações iluminadas.
No trabalho o herói era interessante de notar! Tinha ora um ar sério e compenetrado; uma personalidade aspérrima e metódica para cumprimento das obrigações profissionais, ora uma irreverência inaudita de quem não dá a menor importância moral para o que está fazendo.
Na incipiência do emprego – lá pelo primeiro ano das coisas da morte -, conviveu pela primeira vez com a desconfiança e a suspeita da situação de arrombamentos de túmulos.
Tamanha foi sua indignação que se ofereceu para pernoitar no cemitério noites seguidas até que se encontrassem os desgraçados.
Não receberia nada a mais, nem nenhum privilégio pela sua cooperação. Continuaria trabalhando desde cedo e cumprindo todas as tarefas nas mesmas condições.
Nas primeiras noites, nada especial além do silêncio das covas e a amplificação do farfalhar das folhas, dos pássaros na alvorada e dos ruídos e sussurros dos vigilantes.
Durante um ronda, entretanto, os patrulheiros noturnos se dividiram para emboscar os pilantras, caso os vissem. Era pequeno número em relação à área do campo santo, somente um homem para cada sessenta e oito mil e oitenta e seis metros quadrados.
A visão ou distinção de suspeitos era deveras difícil em função das mais de cento e vinte e duas mil campas, com frontões a maior parte, e pouco menos de trinta e cinco mil estátuas, que, não fossem a intrepidez e firmeza de propósito, o preparo físico e moral, e o equilíbrio adquirido nos treinamentos, elas poderiam enganosamente receber um projétil ao menor escorrer de suas sombras, tão parecidos eram esses efeitos com o movimento dos vivos.
O sepultador estava pelo lado Norte da Necrópole, andando arqueado por entre os túmulos, buscando qual lince enxergar através dos cenotáfios, os ladrões de covas.
Um ruído de metal... O coveiro andou um pouco na direção do ouvido detector e escutou com maior intensidade o barulho; se aproximou mais e viu uma luz frouxa saindo do subterrâneo de um jazigo, pelos interstícios da portinhola de bronze.
Burquinha era muito corajoso, mas não confundia burrice com bravura.
Precisava elaborar um plano para surpreender aqueles desinfelizes que incomodavam a sua honra.
Aguardou até que pudesse discernir pelas vozes ou ruídos diversos, quantos malditos trabalhavam ali. Eram dois. Vacilou entre atirar para o alto – os guardas permitiram que usasse seu revólver vinte e dois, com a condição de não alvejar ninguém, mas apenas intimidar - ou chegar atirando. Optou pela segunda ação, mas estacou agachado... Não era o melhor a fazer, não o haviam autorizado.
Decidiu chamar a atenção para que saíssem da toca, ou melhor, da cova.
Curiosamente, veio à imaginação o belo futebol da seleção brasileira de 1982, os gols, e imaginou-se com a copa ganha, entre os jogadores, num enorme pódio, recebendo também uma medalha enquanto o hino nacional era executado... Todos estavam emocionadíssimos!
Arrebatado pelo risco da realidade, decidiu definitivamente tirá-los da cova.
Levantou-se e correu rapidamente pela frente da luz, a fim de assustar os malandros. Teve êxito!
Um deles tão assustado com o vulto, soltou um grito e imediatamente saltou para fora. Burquinha teve o miserável à boa vista para atirar contra ele, mas o fez no chão para rechaçá-lo dali.
O ladrão saiu correndo por cima das sepulturas como pisando em brasa, demonstrando desenvoltura e boa forma. Em poucos segundos desapareceu por cima do muro.
Restava um safado, que não tardaria a sair. Num instante subiu tão ligeiro quanto engatilhou a corrida, mas Burquinha o deteve pulando sobre ele do alto do frontão do túmulo vitimado.
Foi uma luta desigual porque o homem mau, embora atacado pelas costas, era muito mais forte que o coveiro, e não demorou a subjugá-lo.
Burquinha usando alguns golpes que vira num seriado de tevê desvencilhou-se das poderosas mãos do homenzarrão, aplicou-lhe um telefone e chutou-lhe as bolas, sempre acompanhando cada golpe com um tradicional “Iah!!”, como nos filmes do Bruce Lee.
O grande gatuno ficou imobilizado, gemendo de dor. Burquinha, como Bruce, roçou a ponta de um polegar no nariz, num gesto imitativo do ritual do mestre do kung-fu.
Vieram os vigilantes profissionais, algemaram o gigante ladrão e o levaram para as determinações da justiça e do delegado. Aliás, o mesmo doutor que onze anos depois interrogaria os sepultadores sobre casos de vilipêndio de cadáveres.
Os policiais condutores do “minerador” se arrogaram da captura e receberam glórias e insígnias.
Para Burquinha, secretamente herói, a honra foi recuperada e ninguém mais iria suspeitar que ele e seus colegas fossem capazes de tamanho sacrilégio.
Bem, isso até as posteriores investidas dos violadores de túmulos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

GRACIAS ANDINAS