sexta-feira, 29 de julho de 2011

Desculpe-me, Srta. Ingrid

Vá lá que nosso contato não tenha sido aberto, lhano, pessoal! Afinal, sequer nos conhecemos ou nos falamos antes! E a conversa foi rápida, focada, sintética.
A senhorita me telefonou no trabalho, e, quase antes que eu dissesse “alô”, jorrou congratulações por... por... em razão de... Confesso que não entendi direito. Felicitou-me por fazer compras com cartão de crédito, e por isso ter sido selecionado para contato do pessoal de televendas de um grupo de imprensa? Será que foi isso mesmo?
Em certa altura – tinha já entrado em meadas com o raciocínio sobre os papéis da mesa, tarefas diárias (algumas maçantes, outras nem tanto) – hesitei entre dialogar contigo e desobrigar-me das empresas matinais.
De experiência, sabendo-me vitimado por telefonemas comerciais do passado, fui construindo o julgamento de que você me vendia uma assinatura de jornal.
Assustado, então, anotei o endereço de WEB e o telefone que você ditou, para imediatamente romper com a pergunta: “está registrado que eu não aceitei nenhuma assinatura ou adquiri nenhum produto?”
Você disse que não era isso. Lacônica, numa súbita alteração de humor, comunicou que eu teria benefícios no caso de uma contratação. 
Precipitado, ainda disse que havia quinze anos abandonara a leitura de jornais, pois já não me diziam nada, e que, caso quisesse voltar ao hábito, precisaria refletir sobre minha consciência, eu e o mundo... O que a senhorita tem a ver com isso? Que lhe interessa?!
Evidentemente a senhorita não gostou da pergunta.
Também não gostaria se, depois de ter explicado na melhor retórica do português uma enfiada de temas, o interlocutor desfechasse com uma conclusão estapafúrdia ou enviesada.
Desligamos. Fiquei com a impressão lancinante de que nossa conversa não foi escorreita, que eu teria sido indelicado.
Desculpe-me, Srta. Ingrid! Por favor, me perdoe! É que somos mais de seis bilhões de pequenos seres transitando na cabeça do mundo! Angustiamo-nos tanto para sobreviver, que nossa educação confunde, às vezes, grosseria com praticidade.
Depois de emudecido o telefone, minha alma iniciou um ritual de remorso, sobressaltando-me em suspiros e trejeitos apatetados, em total incerteza, um limbo, um vácuo, um “tempo-não-espaço”, uma crise de existência.
Pus-me a perguntar: “... e se essa moça está em experiência de trabalho? Pode ter filhos? Pode não estar no melhor dia?... etc.”
Penitencio-me agora, pedindo desculpas, meu bem!
Desejo sucesso em tua vida; que ela seja longa, e que você a viva bem e plenamente.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

O Discurso do Rei


A realeza monárquica da Inglaterra foi decididamente humanizada. Contudo, não perdeu a elegância, a imponência da solenidade britânica. Nem a fala de George V (“fomos reduzidos a atores”) esvaziou o valor da tradição.
Ao contrário, expor a pessoalidade dos agentes de Buckingham enalteceu magicamente tais homens e mulheres, muito além dos fatos reais mais recentes – menos cinematográficos – dos escândalos de Lady Diana e Príncipe Charles, ou do requintado (e talvez não tão memorável assim) casamento de William.
Tampouco a fria constatação empresarial do Duque de York (na fita, o futuro rei gago, familiarmente chamado de Bertie), seguida da réplica perspicaz do rei, lançou na mortalidade trivial suas figuras, quando o filho declarou ser a família real uma firma, ao que o velho monarca reconheceu que, dado ao clima de insegurança proporcionado pelo apaixonado sucessor, Príncipe David, alguns poderiam perder o emprego. 
Assim é o filme “O Discurso do Rei”, um favor para os trópicos de tentar explicar como e por que membros de uma família - aparentemente ociosa e cara – podem carregar em si a força imagética e o caráter de uma nação.
Não trata teoricamente, mas em imagens e personalidades, e som – ou falta dele -, no espaço entre – guerras de vinte anos, num contexto de transformação mundial e inovações tecnológicas (rádio, avião, medicina e geopolítica).
Eleição não há, pois a coroa é oligárquica, sucessória, hereditária, primogênita e vitalícia. O poder, no entanto, não é absoluto: há a classe política e um estado de direito. Aliás, são os responsáveis por manter a roda girando. Então, para que serviria um rei?
A esta pergunta, que pudesse ter sido feita algumas vezes por brasileirinhos tão “mais ou menos” como eu, o filme respondeu com base na veracidade de acontecimentos, numa proposta interessante: tire a voz do rei e vejamos para o que ele serve.
O filme biográfico é humorado quando o Duque se submete a espetaculosas e estranhas terapias ou gagueja, ou faz meneios para não travar diante dos súditos; é trágico quando a platéia se frustra ou quando o reino ameaça desmoronar ante a possibilidade de renúncia do sucessor, e é tenso quando a segunda grande guerra chama à realidade aqueles tempos sombrios.
No entanto, não é ridículo ver o futuro novo rei se esfalfar num trava-língua ou demonstrar total aflição ante um público ávido de uma palavra oracular.
É o inverso: aliado à aproximação amistosa com o pseudo-doutor Lionel Logue – um súdito de colônia; de par com o envolvimento de um príncipe com uma fogosa plebéia, e da confissão de mazelas psicológicas da infância, “O Discurso do Rei” declarou: para ser rei é preciso ter a capacidade de superar seus próprios problemas, suas dificuldades pessoais, seus traumas mais íntimos, colocá-los atrás e abaixo do ideal de patriotismo, para, só assim, ser a representação encarnada da união, da força e da virtude de um povo.

domingo, 17 de julho de 2011

CRÔNICAS DOS COVEIROS DO CEMITÉRIO VERDE - CAPÍTULO IX - BONS MOÇOS

Definitivamente um grupo de trabalhadores não é uma confraria, ou outra coisa que exija a total entrega de seus agentes.
Embora estar daquele jeito a serviço da morte signifique seguir normas determinadas e regulamentos prescritos, sob o risco de, não o fazendo, maltratar pudores e destratar o sagrado. 
No entanto, não há observância rígida do comportamento individual fora dos muros, nem vigilância repressora dos “desvios de padrão”, descaminhos da vida, ou arroubos das paixões.
Tampouco existe contrição por não ter sido altruísta em dado momento.
Mesmo assim, uma Necrópole tem um quê de ordenamentos e rituais.
Não se trata de se seguir severamente um ordenamento ético ou existencialista, nem de lançar mão de uma perspectiva de equilíbrio psicológico e espiritual.
O Cemitério Verde reservava um longo espaço de tempo diariamente para todos os operários, especialmente aos que ficavam fora do plantão de sepultamento, cabendo-lhes a limpeza do campo santo. 
Como disse antes, a varrição era lida rápida que deixava ócio para as contratações de serviços proibidos, ou tramas, conspirações, estudos ou meditações.
Uma turma chamava a atenção mais pelo agrupamento cotidiano em horários regulares do que pela ociosidade.
Gostava de ler a bíblia e orar a Deus. Era a turma dos evangélicos.
Alguns que conheci, tão logo atingiam seus intentos materiais, por mais simples que fossem suas prosperidades, transformavam-se em seres insociáveis.
Não ataco, não defendo. Não confirmo, não duvido. Vejo e só.
Jesus Cristo junta e a religião espalha!
É possível a hipocrisia nas miríades de associações.
Um bom cristão, no entanto, deve ter humanidade levada a sério! A indumentária não conta. Memorização de excertos doutrinais não vale!
Não só se comover, mas participar, compreender e perdoar.
Oração e cânticos fervorosamente entoados também não me convencem! Tem que amar o próximo, efetivamente amar a Deus sobre todas as coisas, e a conduta o dirá se é real e bom crente!
Meu finado marido era crente, evangélico.
Lembro de uma correspondência que espiei antes da postagem, que meu marido enviou a um amigo. Na época ele, meu esposo, era professor aposentado quando foi responsável por introduzir o companheiro na sucessão do educandário onde lecionava.
O sucessor era jovem, ex-aluno de Santiago, meu velho. Havia crescido e se formado professor, motivo de grande orgulho para o mestre.
Casado de novinho, o neófito enfrentava a mais tremenda confusão espiritual que o levava a questionar a permissividade de Deus quanto à profusão de igrejas, o que transmitia a ele imenso desassossego em conciliar a prática da doutrina e a convivência com seus fiéis.  
Santiago relutou em escrever por acreditar que o moço fosse descobrir a verdade pela Graça, conforme pedisse sinceramente.
Vendo, porém, que o garoto, ao contrário, visivelmente se perturbava mais e mais, decidiu responder a algumas questões que fizera repetidas vezes:

“De um velho professor temente a Deus, para um jovem aluno da vida

Queridíssimo Antonio,

Espero que estejas gozando de muito boa saúde, pois dela dependemos nós dois: você, para seguir eficiente e feliz a carreira que eu, agora me despedindo, suponho ter influenciado: a carreira de educador.

As questões que vens fazendo amiúde são, para mim, de dificílimas respostas, motivo por que receio não responder-te a contento.
Arrisco-me em tentar, mas cuidando que um dia outrem mais capacitado possa ler, escuso-me com antecedência.
Vai assim, contando com a complacência e a ternura com que sempre nos tratamos. Vai assim da forma que pouco posso dentro do que penso:
As coisas de aparência externa da fé (liturgia, gestual, vestuário, comunhão, reza, arte, oferendas, etc.) devem datar muito próximo do momento em que nós - o homem - tivemos o estalo da consciência; se confunde com o início de nossa jornada gregária e, por conseqüência nossa função legislativa.
O tamanho de nossa pequenez, nossa fragilidade ante as forças da natureza - dentre as quais a finidade da existência -, deixaram-nos horrorizados.
Naquela fase, creio eu, ter-se-ia-nos aberto um portal para a religiosidade.
Unimo-nos economicamente em grupos por segurança física, e depois enfeixamos regras de conduta; elaboramos uma ética, uma moralidade, para nossa segurança psíquica e espiritual (termos que uso ora sinônimos, ora distintos, mas nunca antônimos).
Nossa trajetória, de maneira simplista e esquemática, caro Antonio, seria: Animal individual, sem consciência - Animal gregário, brutalConsciência, inteligência, homem, animal gregário comum – homem em comunidade – homem social – sociedade moderna.
Digo de passagem que não percebo na Bíblia nenhum desmentido das ciências. De acordo com o que acredito, o que as Escrituras não dizem não significa que sejam invencionices, mas o que elas dizem [isso sim] é verdade incontestável.
A religiosidade é parte da evolução do homem social até a sociedade moderna. De teocracia à autocracia, e mais recente, à democracia. Do estado religioso para a religião no estado, até a separação entre estado e religião.
Em todos os séculos a mesma consciência de fragilidade faz-nos buscar compreensão de alguma escatologia. A inteligência exige uma conciliação entre o mal estar da pequenez e a capacidade humana.
Surgem os lenitivos da fé, muitas vezes à frente de grupos, como estandartes, que postulam à melhor forma de representar a ‘verdade’.
Depois da introdução, vamos às minhas respostas para tuas angustiantes perguntas, meu amigo:

1)     Homens e mulheres expõem-se ao culto e à oração, pregações e missas para melhorar sua crença espiritual porque a necessidade de crer numa força superior é inerente ao ser humano, e tanto mais confortável será quanto mais houver reforçada a identidade do grupo - pessoas que pensem da mesma maneira;

2)     Não sei se seria possível o uso do pecado para divulgar um ‘novo’ significado bíblico. A Bíblia relata dois momentos do homem em relação ao pecado: a lei mosaica e o ministério de Cristo. Há a passagem do homem brutal, que precisa conhecer o pecado pela aplicação da lei, e o homem espiritual que segue as doutrinas de Deus deixando-se conduzir pela bondade do Espírito Santo de Deus.
Creio, sim, que possa existir o uso do pecado, ou do tema do pecado para dar um novo significado ao próprio pecado, muitas vezes confundindo-o com delito ou conduta socialmente reprovada. Neste sentido o que podia ter sido pecado no passado não o é hoje em dia. Há seitas, por exemplo, que esvaziam o conceito judaico cristão de pecado, preenchendo-o com a idéia de imagem imperfeita de um homem perfeito, Platônico. Aí não se trata de aspecto bíblico, mas de doutrina diferente;

3)     Como disse, tanto maior será o conforto quanto mais pessoas comungarem da mesma fé. A existência de um líder, seja pastor, padre, rabino, pai-de-santo, ou outros, é própria da condução cerimonial de cada grupo. Natural que haja pessoas que se queiram baluartes de sua fé, “ostentando-a” em todos os ritos possíveis... O seu remédio. Estas correm o sério risco da prática da intolerância por não terem compreendido exatamente o porquê e o quê estão fazendo em relação à sua sensação particular de pequenez e fragilidade. A elas, recomendo procurar outro consultório, Antonio;

4)     A fé está para o espírito – ou psique -, como o ar está para a vida. Sinceramente, Antonio, eu não acredito na existência de ateus, mas sim, de crentes de outras crenças que não são as que aparecem; prováveis crenças absolutamente exclusivas.
Certa vez, na introdução de um livro, li um interessante paralelo entre Sócrates e Jesus Cristo. O livro, aliás, contava a história de Jesus e foi escrito para cristãos, ou para quem quisesse saber mais de Cristo. [quando me lembrar do nome do livro, te digo]
É impossível ter espírito deveras saudável sem a busca da compreensão do [seu próprio] processo de fé. Sem isso não se pode desenvolver, e o risco de neuroses aumenta. Exemplos desse descuido foram a Santa Inquisição Católica, no passado, e os rituais de imolação que ainda há nos nossos dias.
Modelos contrários, positivos e negativos, podem ser encontrados em todo lugar e em qualquer religião, às vezes coexistindo sem aparente desarmonia.

Certamente não acabou o tema, senão meus comentários por agora.
De ti - esperança do futuro – espero que descubras o teu processo de fé, mas não se esqueça de tentar ser feliz

Fique em Paz, caro amigo!”
Com tanto ócio, num meio tão eclético, poder-se-ia encontrar mendigos, bêbados ou belos boêmios adormecidos, contadores de “causos”, pombos nos desvãos da chefatura e do banheiro... E os bons moços.
Falarei apenas de três encantadores e bons evangélicos, uma vez que os demais estavam mais para fariseus!
Pântanos de falsidade e hipocrisia há em todas as complexas relações humanas. Engana-se que seja apanágio da religiosidade.
A dissimulação está enraizada em todos os vários cantos sacrossantos, minando a confiança e a lealdade.
Os três companheiros tinham características comuns: eram negros, frequentavam a mesma igreja, eram sepultadores, tinham muitos filhos, fidelidade com a fé e com os homens.
Seredião estava com aproximadamente trinta e dois anos enquanto Arilson e Carlito já viravam os sessenta - quando os cabelos viram nuvens e o olhar angélico; surge o respeito que a sapiência traz, mas a velhice nem sempre.
Perdoe-me caro leitor, preciso de um minuto... Meus olhos choram agora à recordação de Arilson.
Ele teve passamento recente, pouco antes da conflagração que me comprometi a narrar... Ai! Meu Deus!
Bem... Nos horários de relaxamento, quando não lutavam por dinheiro, principalmente após o almoço, se reuniam para louvar ao Senhor. Aliás, com justiça, louvavam ao Senhor primeiro, para somente depois lutarem por dinheiro.
Entoavam hinos e oravam.
Para cada um cabia uma interpretação dos acontecimentos dos dias à luz das Sagradas Escrituras.
Eram cristãos, se acreditavam cristãos e tentavam sempre agir como tal. Sem ostentar sua filantropia, o grupo não negligenciava o dinheiro - esse pomo de discórdia. Eis o motivo porque alguns os entendiam farsantes.
Ora! Eram cristãos, mas não deixavam de ser homens. Então não se deixavam iludir ou permitiam que abusassem de sua boa fé.
Tinham sempre uma boa palavra de conforto para quem precisasse.
Um dia apareceu no cemitério um rapazola malposto, com trajes rotos e hálito insofrível; cabelos desgrenhados, olhar vazio, sem algibeira, história, emoção...
Porfiava o pobre e infeliz com a sua própria sombra acerca do efeito de ambular, e altercava com um deus qualquer sobre sua desdita.
Faltava-lhe coragem para o suicídio, e por isso insistia com a Providência que procedesse ao fim; exigia instantaneidade.
Vendo aquela triste figura, puseram a confabular os três evangélicos de nossa história:
- Que podemos fazer por aquele moço? – perguntou Arilson coçando o queixo num dos seus cacoetes de caboclo vivido.
- Vamos conversar com ele, tentar levar um pouco de entendimento da palavra de Deus. Depois havemos de dar comida e, se ele quiser, pode tomar banho e usar um dos meus uniformes. Aí depois... Vamos ver... – retorquiu Carlito, ao que o grupo automaticamente operou.
- Bom dia rapaz, como vai? Você tá bom? Precisa de ajuda? – Tomou a iniciativa o Seredião, homem de atitude.
O rapaz, então compungido, faminto e ressequido, de olhos agora ternos, sorriu uma linha tênue nos lábios.   
Com efeito, formava um simpático grupo de senhores: dois anciãos e um aprendiz: asseados, educados, pessoas de bem... – “Você está com fome? Que comer?” – continuou Seredião ao flagelado.
- Quero moço – respondeu, prorrompendo em lágrimas.
Acolheram o pobre, que humildemente deu-se ao trato de “coitado!” pelos transeuntes que passavam ao largo da cena.
Alimentaram-no, permitiram-lhe o banho com seus apetrechos de limpeza e higiene; serviram-no com o uniforme do Carlito para depois perscrutarem os fatores de sua má sorte.
Como o rapaz estivesse discursando sem nexo, Seredião propôs, após inquirir se tinha lugar para morar, dar guarida ao miserável:
- Olhe! Minha casa não é tão grande, mas tem um espaço nos fundos onde você poderia ficar sem no causar transtornos... Comodamente, até que as coisas melhorem pra você. Você aceita?
A resposta foi positiva.
O menino acolhido em casa de Seredião acertou na loteria. O seu redentor orientou-o, tirou seus documentos de cidadania, pagou-lhe corte nos cabelos, arranjou-lhe emprego modesto, enfim, tentou dar-lhe sentido à vida.
Numa cidade tão alucinante como a que vivemos, estar vivo não é mais condição de quem vive, é arte, uma árdua labuta. Os riscos que correram Seredião, os filhos e a esposa não foram pequenos. Ele sabia disso, mas a fé e os ditames de sua consciência o ordenaram que assim o fizesse.
No entanto, o jovem peregrino baldou toda a beleza da atitude.
Como não estivesse satisfeito, desapareceu sorrateiro, sequer levou a bíblia e objetos que ganhara ou os documentos oficiais.
A nobreza do gesto de Seredião, a magnanimidade de sua afeição, a prática cristã do grupo e o interesse humanista foram descartados num só golpe: o do desprezo.
Apesar dos pesares, sentiram-se entristecidos pela frustração do projeto e se questionavam incessantemente se a motivação daquela deserção não fora a insistência em fazer com que o jovem frequentasse sua igreja.
Muitos meses depois o garoto foi visto dentro do cemitério, alcoolizado e dando marradas no frontão de um túmulo.
A última notícia é que a polícia o teria preso por tentativa de assalto à mão armada de faca. Coitado!

terça-feira, 5 de julho de 2011

CRÔNICAS DOS COVEIROS DO CEMITÉRIO VERDE - CAPÍTULO VIII - A DANÇA

Durante a exumação dos esqueletos, providências primárias haviam sido postas de lado há muito tempo, porque os sepultadores de tal maneira familiarizados com a tarefa desprezavam a menor possibilidade de contaminação.
Não usavam luvas, nem tinham calçados especiais. Eram escassos os equipamentos de proteção.
Acontecia de aumentar a aparência da segurança quando alguns corpos – dados a altas dosagens de medicamentos ou prolongados tratamentos - não deterioravam no espaço de anos, e inteiriços, negavam aos vermes as suas carnes, teimando em eternizar suas formas.
Contou-me um jardineiro que quando jovem ajudava coveiros durante uma operação dessas. Era um corpo de mulher tão inteiro e conservado após a abertura da cova, que ele pôde ver os pêlos pubianos amarelados.
Explicava assim sua ojeriza por louras, desde a mocidade.
Em certa ocasião houve a necessidade de retirar um corpo de uma gaveta onde jazia já há dezesseis anos, para que em seu lugar outro descansasse.
As informações de sepultamento chagaram tardias.
Não havia mais tempo, era final de dia, apenas um inumador fora destacado para exumar.
Não houve surpresa - nada mais o surpreendia! O corpo estava inteirinho, faltando-lhe apenas cabeça, mãos e pés.
Pensou o solitário: “Eu vou resolver isto à minha maneira porque não dá mais tempo. Estou só, eu e este cadavérico... Devolver-lhe ao repouso não posso. Demandaria muito tempo e trabalho que não posso. Bem! Estou só e tenho que resolver...”
Apanhou um machado e como desmanchasse um tipo de quebra-cabeça, iniciou mentalmente o destrinchar do boneco, visando decepá-lo em suas articulações.
Antes, testou o facão; com um panaço não fez sequer uma fenda respeitável no material. Assobiou uma canção tirante a uma valsa... Outro golpe, a carne plástica permaneceu indestrutível.
A valsa aflorou-lhe a consciência. Via o salão de caras luminárias adornado apropriadamente para as debutantes da elite ruralista. Atrás de si o caminho percorrido, marcado pelas flores esmagadas desde a cerca dos fundos que escalara furtivo, e por onde invadiu a celebração. Havia deixado seus irmãos menores na companhia de sua mãe enfermiça.
Lá dentro estavam alinhados seus colegas mais sortudos, filhos dos fazendeiros, acompanhando as elegantes e ridentes mocinhas em seus vestidos exuberantes. Era outro mundo!
Largou o facão, ergueu o corpo cadavérico e danou a rodopiar pelos logradouros do seu país imaginário vendo uma dama sem cabeça (talvez a tivesse perdido por ele!).
E as mãos, o que apalpariam? E os pés, por onde andariam?
Durante quinze minutos supinou a dama, fê-la rodopiar, bailou freneticamente.
Viveu intensamente o seu enlevo esquizofrênico, acordando para o mundo dos túmulos de alvenaria com a sirene do rabecão que trazia um passageiro inerte, novo morador da gaveta desocupada pela dançarina.
Recobrada a necessidade da tarefa, e como transformado em três, em poucos minutos fragmentou o corpo em dezenas de pedaços a golpes de machado.
Instalou as partes em uma urna de cimento, inundada de água. Dispôs cal hidratada e assentou a peça, escondida e quieta, no canto mais recôndito do pavimento sepulcral.
Deu curso a sua realidade.
Ao final, via-se o dançarino melancólico, ensimesmado, talvez rememorando outros momentos felizes da festa que viveu através da janela. 

GRACIAS ANDINAS