quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Luís e eu (1)

Sem atacar ou defender (como se fosse possível não ter um desses efeitos, mesmo não tendo a intenção, em face da personalidade e do contexto), na realidade pretendo agradecer ao Luís Inácio num obrigado terno e simples, sem teorizações ou academicismos, sem ufanias descabidas, bajulações, exaltações rasgadas.
Também não vou contar a história do pernambucano miserável que virou dirigente sindical de grande expressão e depois foi morar por quase uma década no Palácio da Alvorada. As crônicas, o cinema e as edições biográficas já o fizeram.
É um obrigado meu – se bem que, por ora, pretendo que seja só a primeira parte. Depois da despedida do presidente, gostaria de continuar e concluir o texto, sem cessar a gratidão, que fica registrada na alma e nunca se apaga.
Para quem cresceu ouvindo patranhas sobre o fim do mundo em 2000; pressentiu o ar rarefeito da ditadura militar que oficialmente se dissipava quando ainda era criança; para quem viu as diretas-já, retorno de civis à presidência, transformações drásticas da economia e do comportamento; quem já passou de quarenta e da virada do século; viu o surgimento da AIDS e a extinção de ídolos Pop; e quase desesperou de um futuro: a figura de Luís Inácio foi uma permissão para continuar acreditando que é possível melhorar.
Para quem não cria possível se orgulhar por ter nascido pobre nesta terra - posto que bela, muito confusa, corrupta e plutocrata - a recente experiência contrariou as tristes certezas infundidas no cotidiano desesperançado dos desprivilegiados.
Lula, depois da tua despedida, concluo o meu agradecimento.   

Monólogo de mãe

Puseram as melhores roupichas para a reunião de fim de ano na escola (Claro! A fim de condizer com a elegância natural de suas bem-amadas criaturas).
Uma envergou um modelito fashion de grife adquirido com o próprio suor. A outra, sua melhor vestidura – aquela de viscose do réveillon 2002, que o maridão encharcado, num impulso da alegria do pentacampeonato mundial de futebol, dera de presente.
Enquanto se embonecavam com adequação, pensavam no sexo burocrático, protocolar, de que vinham de objeto há anos, tentando lembrar o último coito de amor que teriam praticado.
Não lhes acudia a época.
Assim arrumadinhas no extremo, veneravam suas crias - os seres mais perfeitos, as maiores bênçãos da terra lambuzando-se com as guloseimas, esfalfando-se nas brincadeiras. Que visão!
- Essas crianças! Marquinho sempre faz isso em casa, principalmente quando os...
- Iiiiii! Nem te conto, querida, Zequinha suja toda a rou....
- Marquinho é assim mesmo, já tô acostumada, minha filha. Depois temos que La...
- Depois tenho que lavar tudo... Ainda bem que a babá me...
- Ele não é uma belezinha, meu filho, puxou o p...
- O meu puxou mais o lado da minha fam...
Apenas três minutos depois:
- Acho que ouvi o sinal chamando para as salas. Vamos?
- É, acho que tocou. Vamos, então.
A de iniciativa se aproxima de outra mãe:
- Essas crianças! Marquinho sempre faz isso em casa, principalmente quando os...
- Iiiiii! Nem te conto, querida (...)
A interlocutora do início, ruminando o despeito do vestido da outra, chegou à roda eclética das mães: jovens, maduras, solteiras, recém-casadas, recém-viúvas e recém-divorciadas; bem e mal amadas; modernas e conservadores; médicas, faxineiras, donas-de-casa, advogadas e massagistas; ricas e pobres; brancas, azuis e amarelas. A professora dos anjinhos contava-se entre elas.
Aliás, a mestra encetou a conversa:
- Essas crianças! Joãozinho sempre faz isso em casa, principalmente quando os...

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

O FINAL DE ANO DE TONICO

Tonico chegou cedo na fila, às cinco e meia, mas defrontou-se com a multidão em sinuosa e interminável espera para preenchimento dos papéis de pré-candidatura ao emprego de guardador de lugar em filas longas.
Já tinha passado na fila para a concorrida função de flanelinha, onde conseguira registrar a pretensão de emprego. Não nutria esperança, já que se exigia do candidato, que apresentasse um ponto vago na cidade, coisa que ele não tinha. Mas vá lá! Quem sabe?!
Para a prostituição nem cogitou concorrer dada a pouca generosidade da natureza com sua pessoa e dotes.
De “avião”, nem pensar! Morria de medo de não cumprir os prazos de entrega ou não atingir as metas. O trabalho ao ar livre sem muito contato íntimo o apetecia muito, mas esse negócio do deslocamento sempre o cansava demais.
Também não quis a pirataria de mídias, pois se negava a vender a cultura que reprovava. Sinfonias, filmes de arte... - coisas assim - estavam em baixa.
Pensou em panfletagem. Logo desistiu. A fila era bem maior.
Estava muito propenso a um cargo público. Desistiu porque empacaria na carreira.
Vislumbrou sucesso na mendicância – indústria promissora! Mas corria boato de corações frios e pouco dinheiro circulante.

Tanranrâmmmm Tantanranrâm Râmm
Tanranrâmmmm Tantanranrâm Râmm

- Doutor Tonico, doutor Tonico... Bom Dia! Os empresários estrangeiros estão a sua espera no saguão do hangar 3; A liderança sindical pergunta se o senhor poderá recebê-los ainda este ano; Doutor Zek, do RH, pede avaliação dos novos perfis para contratação... Ah! Sua esposa telefonou de Longe Beach e perguntou se o senhor comparecerá nesta década, à confraternização do fim de ano... Pediu que falasse com seus filhos, que estão no quarto do lado esquerdo, hoje...
- Diga à secretária que os entretenha no salão de recepção do hangar; Receberei a liderança sindical, sim, mas no ano que vem; Zek sabe do que eu preciso: diga que concordo; Não poderei participar da festa; Diga às crianças...
- Doutor, são adultos!
- Diga a eles que depois nos falaremos; Marque reunião com o psicanalista às onze, e me traga duas, não, três aspirinas.

Tum TiTum, TiTum – Tum TiTum, TiTum – minha eguinha pocotó... pocotó, pocotó, pocotó....
Tum TiTum, TiTum – Tum TiTum, TiTum – minha eguinha pocotó... pocotó, pocotó, pocotó....

- Tonico, seu preguiçoso! Levanta que o seu Zé já ligou duas vezes.
Tonico pulou dentro da roupa e foi feliz para o bico conseguido com muita súplica, de Papai Noel locutor da lojinha de um real.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

AOS FILHOS

Onde estáveis, filhos, meus filhos?
Que demorastes tanto a vir dissuadir-me da tristeza;
Pacificando este meu coração – de que já até duvidava que fosse humano
Tamanha a dureza!

Tuas mãos quentes,
Olhos vibrantes, sorrisos e orelhas,
Pés, dentes, cabeleiras e inocência,
Tudo de vós rechaça de mim qualquer angústia do mundo.

No dia a dia dos ensinamentos que me concedeis,
Aprendo a viver por amor,
A relevar os aborrecimentos fúteis dos dias,
E a enobrecer meus sentimentos.

Ensinais-me paciência e tolerância,
Lealdade e altruísmo.
Vejo mais claras a compaixão e a fé,
Porque sois tais coisas concedidas a mim pelo Senhor!

Onde estáveis, filhos, meu filhos?
Em que parte? Em que dimensão?
Que eu esperava ansiosa e secretamente a vossa vinda
Ao meu universo particular.

Viestes dividir os tempos da minha existência
Em antes e depois de vós.

Obrigado meu Deus,
Por minhas crianças abençoadas!
Obrigado filhos, meus filhos,
Por me deixarem amar tão pura e intensamente assim.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Ao que chamam de funk

O funk! O batidão! As bundas! Êta! Coisa boa!
Mas cadê a música? Cadê a melodia, a harmonia, as letras que poderiam nos ajudar a criarmos pessoas melhores para o futuro?
O que a indústria fonográfica, as televisões, os patrocinadores de entretenimentos e tantas nulidades de plantão têm chamado de funk - e a molecada tem ostentado irritantemente em seus celulares, carregados nus, sem fones e sem limites, nas mãos, com irreverência nos coletivos e a caminho dos colégios - não é só um ritmo pobre, repetitivo e monótono.
É também a prova de que os meios de comunicação não têm o menor interesse em veicular conteúdo de qualidade para as novas gerações.
Parêntesis: desconfio que a prole fidalga – filhotes dos donos da patifaria – não ouve tal enormidade, e se a ouve, divide o tempo com estudos em boas escolas pagas, com passeios e gastança nos shoppings, com viagens... Enfim, consumindo.
Eventualmente vai aos bailes funk, mas acompanhada de alguma vigilância a fim de que as ninfetas da requintada tribo não sejam as “preparadas” da vez, nas rodas selvagens da curra consentida regada com drogas e bebidas, nos salões, comunidades e praças.
De igual nos jovens de qualquer classe é a falta de bom senso e os ouvidos deseducados para suportar o barulho e rebolar uma mímica de sexo promíscuo do tipo “quero dar sem prudência”. 
É um símbolo sonoro da sensualidade coisificada; um grito de irresponsabilidade sexual; espécie de triunfo do hedonismo sobre o respeito e amor próprios.
É também prova de que também nós, pais modernos e adultos maduros, fomos tolamente permissivos com nossas crianças, agora os tais jovens.
Fizemos roleta russa com nossos meninos e meninas, quando, com pouco zelo, os entregamos ao mundo dos sentidos sem prepará-los para transitar no mundo das perversidades.
Agora é isso: “sobe e desce... e geme e estremece...” e uma tonelada de trocadilhos, cacófatos, obscenidades e pornografias, cuja freqüência, dizem, as autenticam como naturais.
Será que deveríamos dizer “sentimos muito” ou “bem feito pra nós”?
Ou fingiremos que as mazelas que nasceram nas fissuras dessa cultura apodrecida ainda não nos importunam?  

Ditados (religiosos) populares

Certa vez, muito rápido e superficial, falamos de provérbios religiosos populares, os quais - afirmam veementes seus usuários – são de autoria divina.
Ditados como: "Não cai uma folha se Deus não quiser"; "O sangue de Jesus tem Poder"; "Deus ajuda a quem se ajuda"; "Deus ajuda a quem cedo madruga"; etc.
Claro, estou muito longe de confirmar tais expressões textuais nas Escrituras. Pode ser que algumas delas encontrem referências literais em traduções e edições outras, de que não disponho.
O que vale, contudo, é que, sendo interpretação livre ou não, nenhuma delas - desde que aplicadas à Santidade e Caráter do Senhor Deus -, contraria a sua Verdade e o seu Poder.
Ao contrário, as reafirmam.
Por esses dias, entretanto, percebi o que seria um provérbio popular, expresso quase textualmente na Bíblia; "Maldito o homem que confia no homem."
Está em Jeremias, 17:5: "Assim diz o Senhor: Maldito o homem que confia no homem, e faz da carne o seu braço, e aparta o seu coração do Senhor".
Mas vejamos outro aspecto, bastante comum aos anexins: o uso indiscriminado apresenta o risco da assunção de “verdades relativas”, da transformação de coisas consagradas à adoração e conduta, em frases de efeito, ou pseudo-soluções, com o fim de aplacar culpas e justificar comportamentos, minimizar responsabilidades.
Entram cuidados elementares para evitarmos a esparrela, sintetizados na chamada, possivelmente de um programa de rádio ou slogan de campanha: "Texto sem contexto é pretexto".
De exemplo vai o excerto posto a descoberto, em duas conjunturas:
Específica: não se trata de quaisquer homens, em quaisquer épocas ou circunstâncias.
A afirmação do próprio Deus pela boca do profeta Jeremias é direta aos israelitas do reino de Judá, há aproximadamente 2500 anos, advertindo-os de seu inevitável cativeiro em Babilônia que duraria algumas décadas.
O motivo era, outra vez, a apostasia do povo e seu seguimento a falsos deuses, contra o quê não adiantaria pedir auxílio em aliança de guerra.
Geral: Para quaisquer homens, épocas ou circunstâncias, se fiar na energia humana para justificar o abandono das sãs doutrinas de Deus, será sempre catastrófico.
Portanto, utilizar o ditado ou ampliar a aplicação dessa passagem das Escrituras para além destes aspectos me parece um ato leviano.
Deus não ordenou a descrença, a desesperança ou a desconfiança entre os homens; a falta de palavra e o aviltamento do caráter são responsabilidades suas e não de Deus.
Não devemos ser paranóicos, desconfiados de tudo e de todos. Prudência não é isso. Esse comportamento inibe, sim, a cristalização das amizades e as manifestações de amor fraterno.
Para não virar um ensaio sobre as morais de uso particular e público, encerro, então, crendo que o melhor é saber onde o galo está cantando, para saber se estamos no fuso horário certo.
“Examinai tudo. Retende o bem; Abstende-vos de toda a aparência do mal”, registrou Paulo na segunda carta aos cristãos tessalonicenses, capítulo cinco, versos 21 e 22.

CRÔNICAS DOS COVEIROS DO CEMITÉRIO VERDE (I à VII)

I – DE INTRODUÇÃO
Peço uns minutos do seu tempo para falar de morte.
Não numa conversa macabra, senão em crônicas às vezes recheadas de pesares.
Antecipo minhas desculpas por tomar de assalto o seu ócio sagrado, eventualmente romper, brusco, a paz e o humor do caríssimo.
Mesmo correndo esse risco - de que o amigo possa se desinteressar pela prosa -, a estória, se não despertar reflexão, ao menos poderá proporcionar-lhe alguma distração.
A saga foi a mim narrada por um bondoso senhor octogenário, único personagem vivo daquelas circunstâncias trágicas. 
Coisas estas que, aliás, não estão distantes da realidade de nossos dias, não. Ao contrário, são frequentes nos cantos obscuros onde índios e trabalhadores rurais, crianças de rua e despossuídos são chacinadas.
Também os tipos não se limitam aos muros. Os tais não se encerram na imaginação ou nessas páginas. Estão, sim, espalhados pelo mundo, parte de cada um em nós, e nós, podendo vir a sê-los cada um por vez, ou todos ao mesmo tempo.
Aos noventa e sete anos vou contar de pé num fragmento tumular - parte integrante de enormes ruínas físicas e moral.
Tudo até então me era inimaginável...
Cheguei suavemente carregada por minha pouca energia, anunciei-me com passos lentos a intensificar o farfalhar da primavera.
Agora estou aqui neste perímetro fantástico sem nunca antes ter-me ocorrido alguma impressão sequer de que pudesse escorrer humanidade nestas alamedas, vida nestas lápides, suor, sonhos, felicidade e anseios em cada polegada deste lugar.
Espero que ainda dê tempo, que seja possível ao homem converter-se, e a vida se tornar próspera e harmoniosa para além dos caprichos e ilusões.

II - UM UNIVERSO PARTICULAR
Era um universo particular, prenhe de símbolos de fé, cujo levantamento nos mostra imediatamente a popularidade de Jesus Cristo – de cada quatro esculturas duas representavam alguma passagem da saga cristã na figura de seu protagonista, e sempre o símbolo maior de seu sacrifício e redenção: a cruz.
Às demais cabia uma versatilidade inumerável de motivos e temas, muitas assinadas por célebres artistas em suas épocas.
Choquei-me ante o respeito simplista dado às verdades a mim inculcadas desde os rudimentos da fala no meu idioma, religiosamente: a vida como pena e provação, a morte como continuação daquela.
Fiquei bipartida, parte aqui dentro de mim, fantasmas zumbindo em meus ouvidos; parte lá fora onde o veneno é produzido: o tumulto das cidades, violência e poluição; a dignidade provada a todo instante; o homem apequenado, oprimido, enlouquecendo, acotovelando-se para sobrepor mais problemas aos problemas existentes, coisas, futilidades e falsas necessidades bem acalentadas.
Todas rematavam construções tumulares fabulosas, algumas até, que o preço equivalia a dignas e caras moradias dos bairros nobres da comunidade viva.
Com a imprecisão que a minha memória me permite – vejam minha idade, leitores! -, não sei dizer se era época de frio tempestivo. Sei que o clima era gélido nos dias em que começou a guinada mental de nossos personagens.
A garoa caia impiedosa. Aos mais atentos, as folhas das inúmeras árvores ofereciam, gratuitamente, um espetáculo de sua graça, acumulando gota a gota no côncavo de suas nervuras e despejando em filetes exíguos, a água pura que vinha do céu.
O paradoxo daquele cenário talvez repousasse na exuberância dos verdejantes jardins e frescas flores dos nababescos santuários de morte em contraponto aos ressequidos terrenos abandonados de desconhecidos corpos sem alma.
À luz desse meu olhar, creio que a pudesse comparar a uma aprazível área verde com alamedas pontilhadas a espaços por terrenos áridos, embora neles constassem vestígios de ressurreição, restolhos de pequenas culturas de mandioca, batata e abóbora.
Numa das delimitações espaciais daquele universo, uma cerimônia de despedida estava se processando: um corpo sem alma estava sendo sepultado.
Traspassava o ar uma forte fragrância de jasmim que ao invés de alegrar, mais contristava o lugar.
Não só ali, mas em toda a área abarcada por aqueles muros caiados de um branco gelo, o cheiro recendia inexplicavelmente mais forte do que em qualquer outro dia de enterro.
Era tudo modorra apesar do viço das flores e a imponência das árvores centenárias com seus cimos frondosos a bailar com o vento.
Os ipês - suponho plantados por genial jardineiro - alternavam seus matizes formando um extasiante cordão em torno das araucárias; os pinheiros e ciprestes alternavam-se na concorrência da altivez, humildemente submetidos a reverenciar os jatobás vigilantes do tempo, e os mognos e paus-brasis de aparências ásperas, como a condenar os malfeitos dos homens.
As árvores eternas harmonizavam com a sazonalidade das frutíferas, os abacateiros, as acerolas, pitombeiras e laranjeiras.
De relance viam-se corujas e falcões em armistício com as rolas e pardais; os rouxinóis, bem-te-vis e a infinidade de espécies canoras, numa profusão de trinados, celebravam a existência.      
Não muito afastado, num refeitório, alguns homens aproveitavam o frio suave e a desocupação momentânea para a diversão de uma música regional tocada com uma gaita de boca, cuja percussão era o compasso de pés, palmas e o batuque de colher numa vasilha de alumínio.
Acompanhavam ainda assobios desdentados e solfejos pouco seguros de uma voz cansada.
Mesmo com a algazarra um sonolento estirado no chão dormitava, enquanto outros dois maquinavam amarrá-lo ao pé da mesa, por farra.
Tramavam:
- Passa esse arame pelo cós da calça dele. – não se continham das risadinhas amolecadas.
   
         
III - O TRABALHO
De fato a contradição era contundente. Que fantástico contraste!
Sem deboches, mas sem rebuços ou acanhamentos, eles estavam se divertindo despreocupados com o quadro: de um lado pranto de alguns, ditos jocosos de outros, conversas deslocadas, pêsames familiares e elogios folhetinescos – era realmente um grupo familiar durante uma inumação.
Do outro lado um grupo de seres humanos vivos dando vazão aos sentimentos de alegria e espontaneidade, tão necessários às relações.
Um forasteiro talvez subentendesse que os piões estavam troçando dada talvez a “uma cruel formação cultural destas plagas”.
Aliás, não poderiam pensar ainda mais erroneamente, já que no esgoto do mundo não se produzia qualquer cultura digna de nota mesmo! – segundo o sentimento esnobe nutrido por terceiro-mundistas xenófilos de plantão.
Dado ao fato de que o refeitório fica tão próximo de fileiras de túmulos, não seria de estranhar que, se não houvesse som de música ali, seria por puro respeito às pessoas que tivessem perdido entes amados.
Eles não são hipócritas! Enterram gente ou extraem da terra seus ossos porque são profissionais, e dessa vil atividade carregavam seu sustento.
A tristeza e angústia da morte inclemente são reservadas para os que tivessem alguma sinceridade e respeito com eles:
- Aí rataiada! O “João Inácio” já subiu.
- Que “João Inácio”?
Que figura enigmática seria esse tal “João Inácio”?
- Cê vai morrer amanhã e vai ser enterrado lá no Brás... E nóis vamo cumê seu butico, seu nó cego!!! Que “João Inácio”?, o da quadra 26 né?!
- Então vamo jogá o bicho no buraco.
Todo defunto era chamado “João Inácio”, que desculpem os homônimos o empréstimo do epíteto, e a mim por estar confessando.
O refeitório é uma exótica combinação de sala de repouso, com espaço de convivência, cozinha, vestiário, confessionário e sala de conspiração.
Três do grupo se puseram de pé automaticamente com seus apetrechos de trabalho (colher de pedreiro, metro, sonda – uma longa barra roliça de ferro, etc.), ao mesmo tempo em que do lado de fora do recinto, outro se pôs a empurrar um carrinho de mão carregado com um preparado de cimento, cal de construção e água.
Todos foram realizar o sepultamento de um corpo sem alma embalado num caixão 2,10 x 0,70 x 0,50. Mais um caixão
Havia, no entanto, uma diferença: o Porca conhecia o homem quando  este ainda detinha a alma no corpo.
Claro não tinha uma relação íntima de amizade, pois se tratava de um conhecido e simpático senhor que pela manhã dos finais de semana e feriados visitava a humilde campa de sua amantíssima esposa.
Com aparência truculenta realçada por colossal estatura – superava bem os dois metros, e as costas bem largas eram proporcionais ao porte – de algum modo lembrava o refugiado nazista, cujas fotos eram veiculadas recentemente nos telejornais.
De fato, o velho tinha às vezes um dissimulado ar ariano; com as íris coloridas e sotaque carregado de erres, aos perdigotos salpicava incríveis cenários de guerra e, embora o esforço para reprimir os ódios, deixava escapar algum comentário revelador de sua obscura origem.
Dizia de um grande homem, cujo mais elevado ideário o mundo rejeitara. Contava de sua inteligência e autoridade, sua capacidade de comando e oratória. Um redentor das nações divinais, vingador dos povos e restaurador da fé.
Porca a tudo ouvia sem entender bulhufas, admirando a dicção e afetuosidade das reminiscências do velho.
Pouco se importava pela história em si e o nome que seu Schultz dizia era difícil reproduzir: Aloufo... Adolfo... Rodolfo... Tanto fazia.      
Para Porca, era na verdade, conquanto agigantado, um adorável velhinho que o cumprimentava. Conversavam amenidades, maldades e bondades, mundos e guerras.
Isso já bastava para este trabalhador sentir sua falta.
Só restava buscar enterrá-lo com zelo e rapidez, numa forma final de carinho.
Com o colega do Porca já se fazia o quinto enterramento do dia e a garoa cessara. O céu, porém, continuava pesado, trazendo às cinco horas da tarde a penumbra avermelhada de uma noitinha falsamente serena.
Com toda a responsabilidade, todos os sepultamentos foram feitos como todos os dias: chovesse ou não, sem preguiça, mal-estar ou achaques.
Findo os trabalhos do dia, os homens voltaram da batalha campal, sujos e cansados, mas felizes por terem assegurado mais um dia de pagamento com a sensação de que reforçaram a compreensão entre eles e reafirmaram sua energia interior de vida.




IV - O PORCA
Alcunhas nascem da força da zombaria comum entre colegas, cujo relacionamento chegou ao ponto de certo intimismo irreversível. Especialmente entre homens grosseiros.
Aquele grau em que uns tentam abalar a macheza do outro, sabendo que derrubar a alardeada virilidade é motivo suficiente, tanto para fazê-lo enraivecer como para arrancar imediata gargalhada dos demais. Isso até o apelido ficar indiferente a todos.
O animal não incomodava. O gênero, sim.
Então radicado o apelido, tem-se novo batismo. Adotado vulgarmente a nomeação, a original soa mal. A mutação é corroborada quando os traços inconscientemente caricatos afloram espontaneamente, como distintivos do indivíduo, atributos exclusivos seus e inconcebíveis em qualquer outro. 
Com Porca não foi diferente.
Nos primeiros dias a zanga chegava ao extremo e a truculência inata se manifestava com muito maior frequencia.
Depois apenas o mau humor.
Depois só muxoxo.
Finalmente era Porca e não atendia mais por Lúcio Walter das Mercês Bento Neto, rejeitando assim toda sua linhagem.
Essa renúncia aos ancestrais motivou mais chistes dos colegas quando souberam que de tal maneira estava arraigada a alcunha, que fora assumida definitivamente pelos filhos e a esposa, que assim o chamavam em casa.
A coisa ficou tão séria que Lúcio Walter sempre se atrapalhava ao preencher formulários, assinar petições - fosse crediário ou outra causa qualquer -, de modo que passou a andar com cópias autenticadas dos documentos da sua identidade, lápis e borracha.
Preenchia as lacunas sempre a lápis. Ao terminar o nome, conferia seu acerto com os documentos e, depois de muitas olhadelas nas identificações oficiais, contornava-o à caneta, sempre mordendo a língua, sinal exterior do esforço que empregava para manuscrever.
O Porca era um homem forte e ativo, simples, ingênuo e leal. Um dos principais funcionários do quadro, acionado sempre que lembrassem a dificuldade do trabalho a ser realizado.
No entanto, tinha aquele homem algo de misterioso quando se comprometia com a mudança da lua.
Seu comportamento nos dias em que a lua estava prenhe de luz era, no mínimo, desesperado. Às vezes até dois dias antes.
Nesses períodos, Lúcio Walter - o Porca -, embriagava-se, indo de quando em quando aos bares próximos da Necrópole, inteligentemente alternando-os para que seus superiores não o percebessem na infração.
Ainda no primeiro quarto do expediente, já ébrio, o pobre selenita com o uniforme mais roto do que o habitual, disparava asneiras e sem-cerimônias a qualquer um.
Buscava a atenção provocando mau humor, incitando atitudes marciais dos colegas.
Do seu apelido, talvez fizesse jus aos maus modos à mesa – arrotava e comia vezes seguidas em qualquer recipiente; chupava os dentes... -, e o pouco asseio com a higiene – barba mal feita, unhas por escovar a sujeira, se desinteressava por lavar as mãos após retirar ossos humanos das urnas funerárias...
Mas Lúcio Walter tinha a inteligência inata do caipira, com a ventura do emprego efetivo na cidade grande, ainda que fosse de coveiro.
Nos dias de boa consciência contava casos vividos na zona rural de onde viera, zangarreava uma viola velha que trouxera da herança do avô, e tocava a pedidos alguns hinos evangélicos na gaita de boca, sem contar as modas caipiras mais prestigiadas pelo grupo.
No tempo dos episódios desta narração, estava prestes a se transferir para outra Necrópole o Miguelito, grande amigo de Porca, seu alter ego.
A união e solidariedade de ambos era de emocionar até os mais embrutecidos.
Para os aleivosos a união constante dos dois homens suscita gracejos, insinuação de homossexualismo. Para mim, tal tese nunca procedeu.
A amizade é mal interpretada tantas vezes porque aprenderam (e não nego que também me ensinaram) que ela é feia e indecente entre os homens, que devem ter como seus melhores amigos: seu próprio pênis e o dinheiro.
Porca sentia-se desde já desgraçado pela perda do amigo. Para ele, os meros três quilômetros de um cemitério ao outro era angustiante.
O amigo lhe era precioso. Ajudavam-se mutuamente. Por isso a pequena distância perturbava Lúcio Walter.
Este enigma encarnado, romântico, brasileiro mouro, tinha problemas aumentados com o deslocamento do amigo para outro cemitério.
Por este sentimentalismo não há de estranhar o caro leitor, o constrangimento do Porca no enterramento daquele corpo velho sem alma, o seu Schultz.
Como também não há de estranhar um episódio em que Porca, num dia - de noite enluarada - pôs-se a encharcar-se de parati desde as sete, só retornando à hora de ir embora, com olhar triste: estava consternado por saber dos dozes enterramentos do dia.

V - OPORTUNISTAS DE ALÉM-MAR
Na cidade dos “pés-juntos”, perenemente juntos, existiam outras funções, além da de sepultador. Refiro-me aos guardadores de jardins e construtores de túmulos.
Não escreverei dos vendedores ilegais de guirlandas, de caixões e ornamentos, com o pé na cozinha da corrupção e da simonia. Farei noutra oportunidade, pois as façanhas por vir são inúmeras e desejo contá-las.
Havia uma burocracia aparente, eficiência pouca em relação a um ganho fácil.
Propinas enfraqueciam a já frouxa fiscalização dos trabalhos.
Jardineiros e construtores eram designações comuns a pessoas que tinham encontrado desde o início do século uma brecha neste complexo sistema de culto aos mortos.
Eram imigrantes de além-mar que, em vez da lavoura ou da fábrica, optaram pela empresa funerária.
Fizeram bem? Se considerarmos que escolher a coisa certa é optar pelo que exija menos esforços com a maior vantagem possível, fizeram bem!
O maldito regulamento rezava que somente às duas categorias cabia a construção e conservação das campas, os arranjos florais, os trabalhos regulares (com pagas regulares) de limpeza e reforma.
Não estabelecia nenhum tabelamento de preços e até as especificações técnicas eram modificadas ou disfarçadas sob as vistas grossas dos fiscais corruptos, peitados por ítalo-ibéricos construtores e jardineiros.
Um cartel fora estabelecido ali.
Não se exigia muito: alguns papéis, documentos, fotos, uma taxa irrisória. Faziam isso há gerações.
Recebia-se um salário mínimo nacional de cada titular vitalício de um jazigo.
Salário mínimo só é ruim quando dele se necessite comer, vestir, educar e viver. Para tirar poeira de lajes tumulares uma vez por semana, em algumas lápides? É uma exorbitância!
Estavam, portanto, já bem ricos os mais velhos e bem abastados os mais jovens - seus filhos, netos e bisnetos.
Os sepultadores incumbiam-se dos trabalhos de enterrar, exumar os esqueletos se fosse necessário, limpar a Necrópole... Pela miserável paga da categoria.
Isto agravava muito o ressentimento social.
Isso não aconteceria se houvesse mais respeito com os coveiros e melhor regulação das atividades diversas.
Os oportunistas de além-mar empregavam ainda, homens desafortunados em trabalhos de empreita pesados, sem nenhuma garantia previdenciária e a baixíssimos custos.
Ao verme que quisesse fazer parte do negócio, deveria contar com a renhida resistência do grupo, o qual aumentava o lucro com a exclusividade da venda de ossuários, pinturas de campas e fabricação de epitáfios.
Então, o que ousasse invadir seu domínio político era, por uma ação conjunta, entregue aos poderes superiores para julgamento e punição. Era a ordem.
Tudo consistia num procedimento espúrio, apoiado no costume e consentimento do topo da pirâmide, homens cevados no poder dos altos postos da empresa fúnebre.
Nesse contexto não podiam os sepultadores também praticar o que lhes desse rendimento maior? Senão vejam: como poderiam sobreviver estes homens com salários ridículos com que mal sustinham a si próprios, enquanto no mesmo perímetro um grupo explorava sozinho e lucrativamente, as dores e o vazio da morte?
Sendo assim, punham-se a indicar o construtor mais generoso, o jardineiro mais esbanjador, com a finalidade de receberem alguma comissão.
Maniatados pelo consuetudinário sistema, procediam como suspeitos esgueirando-se entre as capelas, e amiúde, realizavam clandestinamente pequenas tarefas de construtores e jardineiros - troca de flores, limpeza de muretas, caiação de carneiras, etc.-, sempre se esquivando do olhar dos vorazes europeus e de sua avara descendência.
Esses ofícios assim contratados, lhes rendiam em casos e épocas – como no dia de Finados, por exemplo – decuplicar os rendimentos.
Não era apenas esta apropriação das atribuições alheias que lhes dava dinheiro.
Durante as exumações dos cadáveres eram encontrados acessórios de algum valor venal: relógios, jóias, e principalmente ouro, dentes de ouro. Malbaratados nos mercados negros, multiplicavam seus parcos ganhos oficiais.
Assim seguiam os dias dos homens uniformizados na cidade dos pés-juntos, no Cemitério Verde: labuta e coleguismo, mas também cobiça ganância e ressentimentos.
    
VI - FIM DE DIA
Soavam dezesseis horas e quase todos estavam banhados e trocados.
Punham-se ansiosos por deixarem o campo santo. Os portões da cidade dos mortos principiavam a fechar cinco e meia da tarde e os responsáveis pelos fechamentos eram os funcionários do plantão do dia.
Diariamente se revezavam os homens em plantões de sepultamentos e exumações, enquanto aos outros eram atribuídas zonas da Necrópole as quais deveriam varrer; túmulos devolutos que deveriam carpir e flores murchas que deveriam recolher... Também o ócio que deveriam aproveitar.
O plantão era uma faca com dois fios: além de obrigatório - pois o que faz um sepultador senão sepultar os corpos sem alma? - tinha o lado negativo de ocupar-se do tempo sem esperança de contratação de trabalhos “ilícitos” ou indicações lucrativas no dia de plantão.
Mas tinha também um lado positivo: se tornava convenientemente agradável pelas indefectíveis gorjetas recebidas. Que se diga rapidamente: pelo estatuto tais propinas eram inadmissíveis!
De fato, soavam mal aos ouvidos de todos, dos piões, de seus superiores, e dos vivos além dos muros mortuários.
O roteiro infalível: cinco a doze enterramentos; três a sete exumações; e em tudo: as gorjetas.
Quanto à varrição do efetivo remanescente: era lida para duas horas, restando-lhe o dia inteiro para regatear preços de serviços impróprios.
Quem não o fizesse corria o sério risco do fiado com os colegas, da inadimplência no bar do Tonho, ou das mãos usurárias, pendor de alguns dentre os coveiros.
- Vamo embora macacada! Pegá o burrão e me mandar – dizia o Grandão - rapaz jovem e curtidor da malandragem da boca quente da cidade, enquanto ao Burquinha cabia a contagem e divisão das caixinhas, como preferiam chamar.
- Aí coveirada! Deu uma miséria! Quinze conto pra cada um... - anunciou Burquinha – Tá bom demais. Quem vai pagá o melado?
 - Ah! Ô mano, tô fora falô? Marquei encontro com uma mina aí pra dá um fincão, tá ligado?
Saíram às pressas, três dos cinco plantonistas.
Faltava Grandão e Burquinha, além do Retardatário, que substituíra um faltoso. Estava negociando tarefa rendosa para o dia seguinte e chegou esbaforido na sala multifuncional, onde os outros o esperavam. “Ô caralho! Onde é que cê tava seu porra... tamo com pressa seu viado! Vai tomar banho logo...”, berravam os outros.
Já passara das seis e meia e os três saíram persignando-se, à exceção do Grandão que partiu rompendo a rua para o encontro da garota desejada.
Desceram Retardatário e Burquinha, o mesmo itinerário até o Tonho – carinhosamente chamado o dono da lanchonete do fiado, confidente e amigo.
Popular, Tonho afigurava-se melhor sacerdote que comerciante. Sofria horrivelmente com o aflitivo dilema entre a visão pia das coisas, que chocava com a lógica do dinheiro mercantil.
Celibatário, dizia-se desafortunado com as mulheres. Entretanto, seu desinteresse pelo tema colocasse em suspeição a sua preferência sexual.
O Retardatário, enfarado pelo dia tranquilo bebeu café, pediu que fiasse e partiu célere para seu ônibus.
O Burquinha ficava só outra vez, com suas reflexões, suas mágoas e tristezas, sua solidão.
    
VII - BURQUINHA
O Burquinha era outro caipira oriundo do sul do país.
Garboso, louro, olhos claros, do seu jeito era um homem bonito.
Orgulhava-se de ser descendente de pais hispânicos e avôs germânicos, o que além da compleição e fisionomia, lhe conferia um orgulho diferente, um brio, uma auto-estima declinada no caminho da vida.
Era, sem dúvida, mais ladino que Porca, porém menos ambicioso que o Retardatário. De mais idade que Grandão, não ultrapassava a casa dos trinta, talvez trinta e cinco anos.
Sua vida foi marcada pela necessidade de alçar vôo, mas só ruflou asas sem nunca sair do chão.
Tentava nesta fase de sua trajetória, um purgatório psicológico, acreditando-se remido dos fracassos.
Pela quarta vez buscava a bênção de Deus no colo de uma mulher. Era começo de relacionamento, ainda não havia certeza. As outras foram vezes desgraçadas. Fora traído até ali e, portanto, estava fadado a desconfiar da lealdade feminil.
Pequeno ainda, no modesto sítio, herança avoenga onde seus pais plantavam à subsistência, ordenhar o único patrimônio venal da família, a vaca Prima, era sua tarefa matutina.
Alternava seus sonhos entre endinheirar-se na cidade grande e viver os deliciosos desperdícios da modernosa urbanidade, ou curtir a eternidade bucólica do campo com Antonia, dos Kraytz - a Antoninha.
Diáfana, parecia um anjo de candidez. A cútis branca realçava os olhos pretos, tanto quanto podiam ser. Com gestos somente seus e faceirice de menina ingênua a descobrir o frescor do corpo, foi o verdadeiro amor de Burquinha.
A primeira alma a confundir-se com a sua, os primeiros beijos - aqueles castos, pueris -, os jogos de palavras, de sonhos, as primícias do amor.
Antoninha, mistério e criatura sem par!
Encontravam-se diariamente depois da lida, pois os dividia, afora a resistência dos pais da menina, apenas a cerca entre as toscas propriedades.
Os Kraytz eram vigorosos imigrantes empenhados no zelo de sua cultura, embalde tentando afastar daquele rapazote mofino dos brejos, a menina da promissão de núpcias com os Krabatzin.
Intentaram fugir. Para onde? Como? Eram crianças sem forças, sem dinheiro, sem chances. Tinham que estudar as minúcias da aventura.
As tardes de conluio se prolongaram, e cada vez as intimidades aumentavam em direitura à perda total da inocência. Fizeram amor. Dum jeito com dor, arritmia, medo e felicidade. Inevitável Nirvana!
Por ser segredo vulnerável, o romance não tardou a vir à luz da comunidade.
Pela providência de seus pais, Burquinha viajou às escondidas, de paradeiro ocultado. Antoninha foi escorraçada com direito à publicidade de sua execração. Típico!
Anos após, mortos os terríveis agentes daquele auto-de-fé, Burquinha, já afeito às bebedeiras e meretrício andava à toa nos escuros da cidade quando empatou seu caminho uma puta de pernas tortas e abdome inflado, parecia grávida.
Mal podia divisá-la na noite e na borracheira.
Por sua vez, a mulher agarrou seus cabelos e orelhas a fim de focar o semblante e gritou o maior grunhido de dor que uma mulher, diante do aborto da sua felicidade, poderia gritar. Soltou-o e correu espalhafatosa entre os carros.
Burquinha com o terror nos olhos engatinhou até o bar, onde o receberam como a uma vítima; sentou-se, pediu uma cerveja e aos prantos e gemidos dizia: “Meu Deus, por quê? Antoninha... Por quê?”
Na vez seguinte, nubente, a futura esposa se encontrava desde cedo com um ex-namorado da meninice. Apanhava ônibus de manhã com o pretexto de ir trabalhar, nas terças e quintas, em casa de família. O esforço era justificado na necessidade de amealhar dinheiro para a festa de casamento.
Descia antes dos primeiros cem metros de rodagem, acenava para o outro lado da rua, ao que se supunha correspondida por uma silhueta máscula da janela do andar alto de um pardieiro.
Após os indiscretos cumprimentos ia ao número trezentos e quatorze e apertava três vezes o interfone. A porta se abria como automática; ela adentrava; gozava as delícias dum amor selvagem, juvenil, excitada pelo prazer da transgressão.
A noitinha voltava esbaforida para casa, atirava-se nos braços do futuro consorte, sem o peso do delito. Então, chupava-o, e transavam.
O dinheiro que apresentava como fruto do falso emprego vinha do amante, disposto a pagar pela vivência daquelas emoções.
Com o tempo, o sexo com Burquinha já não a apetecia. Despertou nela alguma repugnância. Lançava mão de um rosário de evasivas para rejeitá-lo.
A situação antes insuspeita, agora com o jejum do coito, em face de tão evidente faceirice e júbilo em ir à rua, trouxe sombra ao coração de Burquinha.
Desconfiando, gozou o direito de abono de um dia no trabalho e a seguiu. Espreitando-se pelas ruas, tornou-se escuso no ônibus e esquinas, medindo os passos da maquiavélica traição.
As cenas que sucederam ao flagrante foram simplesmente patéticas.
Traído enfim, Burquinha sentou num banco despedaçado da pracinha em frente ao prédio, e esperou sem firmeza a saída de sua concubina daquele antro.
Ela saiu, fitou os olhos decepcionados do outro lado da rua e lhes dirigiu altissonantes xingamentos: “frouxo, corno, veado, filho da puta...”
Burquinha, chorão, só chorou.
A segunda mulher, em pleno viço da idade, tinha um mórbido apetite sexual. Era ninfomaníaca a pobre moça.
Visitava o seu homem todo dia, atrás das campas, no refeitório solitário, nos banheiros, sempre exigia um jeito de transar.
Certa vez Burquinha precisou operar noutro Cemitério, em socorro ao açodamento daquele dia – houvera intensos tiroteios nas favelas próximas, com fatalidades em grande número.
A amásia, inconsolável, não resistiu aos encantos, suores e músculos delineados dos companheiros de trabalho do futuro esposo.
Trepou com todos eles, mais de uma vez e de todas as maneiras, durante a jornada até o fechamento dos portões da Necrópole.
Só escapou um grupo de evangélicos, que mesmo excitado conseguiu fugir à tentação.
Foi por eles que Burquinha, o traído, tomou conhecimento da perfídia. Chorou e entregou-se à sorte da noite.
A terceira tentativa não é certo que o tenha traído, mas à menor desconfiança, Burquinha, desconfiado, desistiu do relacionamento.
Agora já era a quarta desde o esfumaçamento de Antoninha.
Calejado de tantas, o noivo contou todas as desventuras, atentando no pormenor de cada gesto, cada expressão, cada comentário da mais nova esperança. Creu novamente na redenção.
No trabalho, Burquinha era alegre, caçoava de si mesmo e todos o achavam engraçado. Era competente, voluntarioso e solidário com os colegas, os quais o estimavam, muito embora o tivessem traído com uma das ex, a ninfômana.
Na região era popular pelo jeito irreverente e galante; boa-praça! Ajudava ainda nesta popularidade, seus trejeitos brejeiros e a voz com que interpretava hits sertanejos. Arrancava aplausos!
Às vezes, entretanto, dividia-lhe a mente outro Burquinha – sombrio, afetado, grosseiro e violento.
No bar do Tonho foi saudado por todos os presentes, estreitamente abraçado por uma moça que fazia apontamento de jogo do bicho. Havia já ébrios concentrados na rua contígua, mas não no Tonho; lá todos o respeitavam e mantinham certo equilíbrio. Menos Burquinha, o brigão.
Começava maroto, bebericando o copo dos colegas; depois se perdia em grandes doses de conhaque, cerveja, rum, vodka, enfim, o que fosse possível. No final alguma briga ou enrosco sempre escandaloso.
Não foi diferente naquele dia.
Retardatário o deixou sozinho com seus recalques. O torpor já lhe tinha subido à cabeça, enquanto no balcão dois rapazes discutiam serenamente se um poeta nórdico fazia a apologia da bebida ou se era vítima do álcool; qual filme, de enredos usurpados por Hollywood ao pobre escritor, teria feito jus à sua genialidade.
Burquinha intrometeu-se com veemência:
- Que conversa mais mole! Cês tão aqui pra beber ou pra conversar? Isso que cês tão falando é coisa de viado rapá. – Os rapazes, ainda fleumáticos, pagaram a conta e com indiferença se retiraram.
Passara das dez, sua mais recente mulher o esperava. Era a quarta tentativa de felicidade conjugal; ele desacreditado, inconformado que estava com a deslealdade feminina.
Burquinha viu-se de parelha com um rapaz bastante bêbado, de nariz adunco, perfil árabe, que escrevia alguns versos num guardanapo.
- Cê acha que eu num tenho razão? As mulheres não valem nada. Se aproveitam do sexo pra enganar a gente, são tudo uma vacas, vagabundas, cadelas... Umas puta, cê não acha, cara?  - disse encostando de ombros com o compulsório interlocutor, que indiferente ao lamento, maquinal, desejou: “Porque o dedo de Deus não nos destrói de uma vez? Um simples piparote, tudo se acaba. Tchau companheiro... Tente ser feliz...” – e foi-se.
Burquinha, alcoólico, olhou no chão um papel, fez menção de chamar o autor do escrito que se tinha sumido na penumbra das ruas. Num flash lembrou-se dos filhos, gerados no seio do adultério, e da sua cachorrinha que depois de quatro crias, desprezou os animaizinhos com naturalidade. Apanhou o papel e leu:

É tanta a dor que sinto e tão
Pesado é o fardo que carrego, que
Pareço carregar o mundo quando na
Verdade carrego apenas as frustrações dos meus ideais.

O escrito se lhe encaixou como luva, arrefecendo seu ódio, aplacando sua tristeza.
Saber-se desditoso já não parecia tão cruel. Ao contrário, naquele momento sentiu-se revigorado pelo fato de que a má sorte da vida o fosse para que se desdobrasse em colossal demonstração de vigor e paciência para, afinal, como lhe dissera Tonho: “seus inimigos que vivessem, para aplaudir a seu triunfo”.
De um trago sorveu o fundo do copo, ergueu-se, espreguiçou-se e foi trançando as pernas em evidente embriaguez.


GRACIAS ANDINAS