sábado, 25 de dezembro de 2010

FALTA DE COMPROMISSO

Na terça, quando o céu carrancudo e chorão nos ameaçou arremeter-se sobre as cabeças em estrondoso desabamento, infundindo o pânico de uma inoperância urbana e afetando nossa já combalida alma citadina que morre de medo do paisagismo em dias de chuva, e sofre com a inércia do trânsito, e sorri cada vez menos, uma situação me chamou à crônica.
Num bairro distante de uma não tão distante cidade da região metropolitana - cujo verde resiste contando com a força da lei -, acordei e recolhi meus petrechos de assalariado.
Passo a passo, enquanto andava para o ponto, se aproximava de mim um quadro tragicômico do cenário puído da vida, um pouco contrastante do cotidiano do lugar, e com as estatísticas de bem-estar local: uma pessoa espetaculosa e embriagada pedia comida na porta de uma escola.
Não é bem assim uma pessoa de infundir nojo. Deixa contar: era uma jovem de aparente maioridade civil, descalça, com roupas extravagantes à hippie, que se confessava bêbada, famélica e geograficamente perdida.
Instava que se lhe desse qualquer comida entremeando a narrativa de seu descaminho.
A diretora, de boníssimo coração, acompanhada de um adjunto coordenador de alunos, deu-lhe suculento prato de sopa leguminosa que a moça, ávida, apanhou grata e humildemente.
Os doadores estacaram à frente da faminta com o argumento de que deveriam levar o prato de volta, ao que a moça os tranqüilizou prometendo que deixaria o recipiente no portão do educandário.
Momentos antes do benefício, a menina tinha distribuído inomináveis impropérios ao populacho que a fitava com escarninho.
Tinha apenas a mim como companhia respeitosa naquele ponto.
Como não lhe prestasse atenção na sua soledade, vi que ela agradecia intensa e efusivamente a Deus pela comida, com muita intimidade: “Valeu Deus! Obrigado Senhor! O Senhor é irado mesmo! Trocamos uma idéia na mata hoje e o Senhor falou que ia me dar comida, e deu...”
Conversava também consigo mesma desejando que surgisse sua galera, com a qual passara três dias de acampamento na mata fechada.
Pensei que estivesse com alvo em algum gnomo ou coisa parecida (seu jeito desenvolto e linguagem despachada levavam a supor tal hipótese - também sua fragrância de maconha e o cheiro indisfarçável de almíscar).
Chegou o ônibus em que os cidadãos locais se apinhavam diariamente.
No coletivo estavam dois de sua turma, de aparência, gestos, linguagem, caras e bocas, tudo igual ou semelhante!
A moça não titubeou: gritou ao motorista pela carona, que contrafeito não teve escolha e acedeu.
Dentro do transporte, com imensa e imunda bolsa de viagem, deu retumbantes demonstrações de saudade e satisfação em ver parte dos amigos.
Não teve rebuços em falar que mandou o mundo do ponto praquele lugar; que conseguiu um rango da hora... quentinho; contou como ardilosamente levou o prato da escola e como ludibriou a gestora de educação.
A muitos do ônibus o grupo deixou desconcertados; alguns cochichavam de sua sujeira e maus modos.
A maioria sentia imensa inveja.

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GRACIAS ANDINAS