quarta-feira, 12 de setembro de 2012

MONÓLOGO: ENCONTRO VIRTUAL – DRAMA, DESEJO E MEDO DE “UM”


MONÓLOGO: ENCONTRO VIRTUAL – DRAMA, DESEJO E MEDO DE “UM”
Tenho medo que alguém maníaco invada meu corpo a salvo, intacto; desconstrua minha identidade, ponha a descoberto meu mundo que aparece equilibrado aos olhos estreitos de meus sólidos circuitos sociais – por vezes, sócios na dissimulação da dor e da hipocrisia...  E por fim, que esse ser intrujão – facínora - vilipendie também minha alma.
Porém, é impossível não admitir o quanto me atrai e regozija a ideia de ter você assim tão perto, tanto acessível - e em tão inexpugnável segurança. Estou defeso da fúria das frustações, dos desencantos que corrompem o ânimo, que desiludem da alegria, que esmagam impiedosamente sonhos e projetos, desesperando a esperança, aniquilando convicções, pondo em risco meu mais apreciado desvelo: eu, o “um”.
Tal como uma seiva, uma energia conveniente que perpassa o corpo e vai ao espírito, ao fundo do coração até, e mais...!
Compulsivamente procuro a razão de gostar desse contato à distância - se bem haja a latência do medo de descobrir ao final, que o comportamento flui involuntário - fruto de distanciamento, da deseducação e perda da habilidade de me expor.
Quem sabe não seja então – me arrogo do estandarte - uma deliberação consciente? Mas por quê? E por que continuo procurando?
Desculpe-me tanta confusão, mas é que o mundo é cruel!
As pessoas são cruéis!
Os sistemas são cruéis!
Eu não sou. Não sou cruel. Não de caso pensado. Se muito for, terei sido ao final da vida, só mais um...
O “um” que serpenteia, ao lado dos bilhões de outros “uns”, com a corrente dos acontecimentos vorazes do mundo, as falácias, o consumo, o dissabor dos dias que passam sem efusões, sem carinho, sem amor.
[Desculpe-me o leitor que inocentemente topou com esse palavrório lamentoso, esse monodrama, essa maçada! Tenha que é um pensamento desordenado em voz alta, desses que a gente tenta compenetrar em meio a uma multidão que grita – uma incontável quantidade de “uns”].
Ah! As inúmeras vezes em que nos traímos: “somos, cada qual, o amor da vida de alguém” - li da confissão de Max Tivoli.
E sonhamos tão real que esquecemos os acordos prementes, irrevogáveis: as obrigações românticas esponsais (e as esponsais sem romantismo), a educação dos filhos e as contas – de que não pode haver distrato; compromissos assumidos noutro mundo, quando o “um” ainda não existia para se fazer dois – faltava base, faltava o outro “um”. Sempre faltará o outro “um” a fazer dois.
Porque o “um” que refiro é inteiro indivisível, sob a pena de se condenar a nada, se fracionado.
Dele se empresta e se usa; ele usa-se e empresta-se a si mesmo, mas depois se recolhe, aquieta-se, reorienta-se em busca doutros “uns”. Mas nunca haverá “um” a fazer dois, embora dois se iludam num “um” artificial e transitório.
A voz do interlocutor lhe falta. Esse “um” está incompleto! A percepção do primeiro está incompleta então!
Este busca evitar enredamento em armadilhas do coração – deslumbramento de quem ainda acredita (mais moderadamente do que outrora) na fusão para o “dois”, mesmo apostando que não acontecerá. Nunca por muito tempo...  Ou simplesmente, nunca.
Cheira fragrâncias e confere dinamismo à foto parada. Fingem-se, de olhos fechados, cenas felizes de prazer e luxúria, quando não uma nova vida, um destino novo. Excita-se, mas ao cabo de algum tempo, se resigna, se desconecta da virtualidade, como fizera tempo antes, a fugir do real.
Ele é só o que eu sou: incautos “uns”, ingenuamente procurando um dia tornarem-se dois.

sábado, 8 de setembro de 2012

Crônicas dos Coveiros do Cemitério Verde - XXXIII - DESOLAÇÃO - FIM


XXXIII – DESOLAÇÃO - FIM
É! Não houve sobrevivente.
Os jornais espetaculares estamparam a chacina daqueles aventureiros.
Tudo desolação e miséria que a tristeza não dá conta!
Ai meu Deus! O infortúnio daqueles homens! Quanta mágoa! Quanto rancor! E agora, quem vai enterrá-los juntamente com tantos outros corpos sem alma?
Quem vai enterrar esses homens perdidos? Quem vai servir de coveiro para os infelizes?
Ai meu Deus!
Agora é só escombro! Agora todos os corpos estão sem alma...
Porca foi encontrado com tiros no peito, estirado ao lado de seu melhor amigo, Miguelito. Ambos guardaram nos rostos a expressão de uma amizade eterna.
Seredião, o único evangélico combatente, pereceu com os joelhos curvados, uma bíblia de bolso numa das mãos e um revólver na outra.
Lupércio e Divina, que tinha vindo em reforço para o conflito, foram esmagados por uma escultura monolítica de mármore europeu que teria se desprendido com o abalo de explosão.
E agora? Todos os personagens estão terminados inertes... Uma equipe procura nas ruínas alguma fonte de vida. A imprensa está presente. A turba de curiosos também... Ai meu Deus! Tende piedade de nós!
Os operários I e II - construtores e jardineiros -, se dividiram entre carpideiras e contabilistas. Os últimos, dissimulando a alegria, calculavam o lucro da reconstrução da cidade dos mortos. Os primeiros mentiam se importar.
Literalmente, mal esperaram a poeira assentar: uma funcionária da Associação dos Cemitérios Privados pregava uma placa “O CEMITÉRIO VERDE ADMITE COVEIROS”.

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

As Crônicas dos Coveiros do Cemitério Verde - Capítulo XXXII - CAMPO SANTO - CAMPO DE BATALHA


XXXII - CAMPO SANTO - CAMPO DE BATALHA
Os rumores eram cada vez mais intensos e depurados. Os boatos tomavam feição de notícia. Os sepultadores acompanhavam tudo pela tevê. “Não podiam evitar o inevitável...”
Prevendo que o embate, de ideológico e político se transformaria em combate armado trataram de operar a logística da resistência.
Remeteram para todas as suas diretorias regionais, instruções de armazenamento alimentar, suprimentos de armas, vigilância dia e noite, estoque de munições, remédios e roupas. Principalmente, exortaram os colegas a concentrarem o maior número de coveiros por cemitério e que a concentração deveria ser feita de maneira a mais discreta possível em, no máximo, três Necrópoles estrategicamente localizadas em regiões populosas de grande atividade comercial.
Laurenciano e seu grupo distribuíram os combatentes nos cemitérios Verde, Azul e Roxo. Grandão e Neguinho-Buiú trataram das armas conseguidas a preços baixos de traficantes e nóias. Além dos alimentos que cada um trouxe de casa, trataram de plantar provisões de mandioca, milho e batata em centenas de covas de terra abandonadas. Com nenhuma experiência de guerrilha acreditavam-se assaz munidos e fortes para durarem meses.
Não tardou. O chefe da operação repressora entrou com o ultimato de abandonarem o local, senão por bem, pela força.
A resposta gritada por Burquinha posteriormente tornou-se refrão vazio duma canção popular que ninguém conhece: “Sem dignidade não existe diferença entre vida e morte.”
O cemitério cercado, ninguém sabe de onde partiu o primeiro disparo, mas houve repentina saraivada, um trovejar de estampidos.
Burquinha, com lágrimas nos olhos azuis, danou a correr aos gritos de “filhas das putas”, com dois revólveres nas mãos descarregando a esmo.
Foi morto com tantos furos que seu corpo resultou total e completamente desfigurado – contaram-se cento e quatorze projeteis na autópsia.
Retardatário que foi socorrê-lo recebeu uma única bala na cabeça e sequer gemeu.  Caiu perpendicularmente ao lado do companheiro, formando uma cruz.
As mulheres e crianças até então seguras, estavam confinadas num barraco onde guardavam os materiais de sepultamento, e agora também suas histerias.
Soldados, sorrateiramente, saltaram os muros, armados com pesados calibres.
Ao sinal de um tilintar – que hoje se supõe da queda de um ancinho -, abriram tantos buracos na edificação de madeira quantas balas cada uma das trinta e seis armas permitiu.
Na devastação daquele barracão nenhuma alma sobreviveu.
Mais mortes rápidas: cinquenta e quatro funcionários rebeldes foram surpreendidos e mortos num brutal e sumário fuzilamento.
Laurenciano, Grandão e Neguinho-Buiú foram cravejados de balas, em franco enfrentamento com os adversários.
Não se apurou a responsabilidade de quem teria lançado explosivos que destroçaram sepulcros e corpos vivos. Vieram à superfície milhares de corpos que jaziam há anos quietos em suas campas. Capelas e jazigos foram abaixo.
A operação não durou vinte minutos.
Nos outros focos de resistência espalhados pelo país, os que não sentiram os efeitos ruinosos do combate se renderam, e seus líderes foram aprisionados.

domingo, 26 de agosto de 2012

CRÔNICAS DOS COVEIROS DO CEMITÉRIO VERDE - CAP. XXXI - GREVE


XXXI - GREVE
A greve, que teve início na semana subseqüente ao triste episódio, já durava quinze dias.
Repercutiu estrondosamente nos meios de comunicação.
Por todo canto, os cadáveres apinhavam-se nos portais dos cemitérios, nos hospitais e igrejas; o ar era irrespirável.
Uma comissão foi chamada a debater e obteve promessas de reavaliação da insalubridade, aumento salarial, escalonamento de folgas, adicional de penosidade, planos de cargos e carreira, assistência médica e odontológica, entre outros itens da pauta original.
Cessaram a paralisação ameaçando retomá-la em breve se não fossem cumpridas as exigências, sobretudo a apuração e punição dos assassinos de Trindade.
Retornaram aos trabalhos imediatamente para normalizar a caótica situação, determinando que os fornecessem sem demora equipamentos de proteção e segurança. Pela primeira vez a classe recebeu material tinindo de novo – eram botas com revestimento duplo, luvas térmicas, luvas descartáveis, três jogos de uniforme, máscaras protetoras e tudo o mais necessário para o enterramento em massa.
O trabalho empatou: zero a zero em três dias.
As visitações aos cemitérios se multiplicaram em muito além dos frequentadores habituais.
Visitantes de outros segmentos da sociedade compareceram: repórteres, estudantes, religiosos, lideranças negras e homossexuais.
Os repórteres queriam matérias para os seus jornais. Os estudantes estavam à procura de temas para trabalhos acadêmicos. Os representantes das minorias estavam em solidariedade.
Os visitantes habituais sim, estes serviram de fiel da balança à ilusória aceitação do movimento pelo grande público.
Segundo enquete realizada por Burquinha, mais de oitenta e cinco por cento era terminantemente contra a greve; outros mais de cinco por cento dos entrevistados acreditaram mesmo absurda a idéia de coveiros terem ousadia de formar alguma entidade e reivindicar direitos.
Quatro por cento se negaram a comentar. Menos de um por cento: essa a proporção do apoio popular.
A estatística pungia o coração dos sepultadores.
O tempo corria de par com a vontade da categoria de ter melhorias atendidas.
Nada mudara. Então reiniciaram a greve. Desta vez com a firmeza de só retornarem com negociações acompanhadas pela imprensa e pareceres de autoridades trabalhistas devidamente registrados.
A greve se alastrou por todo país. Em algumas regiões se seguiram conflitos e confusões.
Nos interiores houve pressão dos prefeitos, dos religiosos, da polícia e das populações. Chegaram notícias de confrontos entre sepultadores e as guardas municipais, demissões em massa, ataques e apedrejamento às casas de coveiros... Tiros... Mortes...
Esteve presente no Cemitério Verde o presidente da Associação dos Cemitérios Privados, acompanhado de muitos assessores, jornalistas e próceres políticos.
Não cederam sequer a questões menores como adaptação das acomodações e pagamento integral das horas extras com índices e cálculos equiparados aos dos demais trabalhadores da nação.
Sua contraproposta ficou muitíssimo aquém das expectativas dos trabalhadores. A greve continuou.
Acumulavam-se os féretros.  Alguns caixões estavam estourados. Outros, menos resistentes deixavam vazar fluídos cadavéricos.
As forças do exército, bombeiros e policiais foram chamadas para se ocuparem de enterrar os esquifes que já somavam mais de três milhões.
A resistência era férrea dos dois lados.
A atrapalhação dos assessores de todas as esferas de governo desconcertava os chefes executivos e minava antecipadamente as futuras candidaturas.
A sociedade estava em comoção pelo terror das doenças de transmissão aérea.  O povo mascarou-se contra a atmosfera infecta. Uma tonelada de especialistas da saúde falava diuturnamente nas televisões.
Os homens inaptos trabalhavam alucinantemente sob orientações técnicas de autoridades sanitárias, mas não conseguiam vencer a tarefa, além de que, em meio ao bulício e atividade frenéticos, não fechavam adequadamente as paredes mortuárias. Contrariavam a profundidade mínima exigida pelo olfato humano nos sepultamentos em covas aterradas.
Realmente as forças armadas, os homens de segurança e salvamento não tinham eficiência necessária para rechaçar quadro tão dantesco.
Os funcionários do Cemitério Verde e toda categoria foram sumariamente exonerados, uma vez que os tribunais julgaram o abandono de serviço essencial. A greve foi julgada ilegal.
Seus líderes e famílias foram perseguidos.
Durante as três semanas de greve desde o recomeço, iam às ruas pela manhã e apresentavam seus discursos e faixas; depois voltavam para suas casas, assediadas por oceanos de gentes indignadas.
Sofreram ofensas verbais e graves agressões físicas.
Os que tinham mulher e filhos os levaram para o cemitério e decidiram não mais arredar o pé enquanto as demissões não fossem anuladas e as reivindicações atendidas.
Outra vez os institutos mostraram sua intransigência, escusando-se de apresentar razões ou inclinação para solução pacífica - forma, aliás, pelas quais parece terem se cristalizado.
As autoridades policiais, sanitárias, executivas, legislativas e judiciárias não toleraram mais de quatro reuniões com os coveiros. Determinaram a imediata remoção dos revoltosos.
Nos meios de comunicação pouquíssimos analisavam as circunstâncias à luz da razão. No mais, muita notícia tendenciosa e desinformação. As bocas já diziam horrores de um conflito armado.

segunda-feira, 23 de julho de 2012


XXX - FENACOVEIRO
Laurenciano foi eleito Secretário Geral e Burquinha, Secretário de Comunicação. O Retardatário ficou com a Diretoria da Região Sul. As outras diretorias regionais ficaram a cargo dos filhos de cada região.
A primeira audiência de negociações foi conseguida com muito custo, e a reunião foi decepcionante. O presidente da Associação de Cemitérios Privados recebeu a inaudita comissão com tamanha indiferença, que por instantes abalou a firmeza de propósito dos trabalhadores.
Em quarenta minutos expuseram seus problemas e possíveis soluções, o presidente, displicentemente, disse que avaliaria a pauta de reivindicações.
Duas semanas, nenhum contato, nenhuma manifestação.
Instaram em contatar o grupo de empresários e foram informados da impossibilidade de atender a mais de noventa por cento das propostas.
Tomaram diferentes iniciativas: procuraram amparo jurídico e apoio de diversas assessorias; recorreram à imprensa e acordaram uma passeata conjunta com outros trabalhadores e outras minorias.
Cinco meses, nada conseguiram. Sequer os fidalgos se dignaram a barganhar os exames médicos periódicos.
Novas passeatas, agora em vários pontos do país. Aparições na imprensa; apoios de políticos supostamente humanistas; pleitos em tribunais de trabalho, associações com outros grupos, etc.
A categoria ganhou espaço nas gazetas e nos comentários do povo em geral. Tanto uns quanto os outros não criam no sucesso dessa inovação, apostavam mesmo que tudo terminaria logo.
Nove meses de pressão, Laurenciano propôs greve: “Não tem jeito, eles não aceitam negociar... a gente faz mais pressão nos tribunais, eles vivem prorrogando; marcamos reuniões com o cara lá, ou ele é intransigente ou está viajando. E a imprensa? A imprensa, a qualquer momento pode mudar o foco das notícias se houver mais morte nas enchentes, nos desastres rodoviários, nas guerras da periferia, na matança das drogas ou nos peidos de alguma celebridade. E os políticos? Nenhum deles falou em projeto de lei pra gente!”
- Laurenciano! Pessoal, pessoal! Óia... Óia!!! – acorria esbaforido Burquinha com um papel na mão que apanhou do fax dum escritório de advocacia das proximidades – Mataram o Trindade. Atiraram nele... Ele tá morto! Morto!
- Não tem jeito mesmo pessoal. Nós não podemos evitar o inevitável: o negócio é greve. Aparecermos, só, não basta. É como sofrer com dor e não tomar remédio, ver a chuva e não se cobrir. Eles todos vão ficar nos levando em banho-maria até que desistamos e o grupo que formamos se enfraqueça e se acabe. Sou a favor da greve e quem estiver comigo, levante o braço, certo? – ergueu o orador agressivamente o braço.
Trindade era sepultador de uma cidade sertaneja do norte do país, que assumira a responsabilidade de organizar a categoria daqueles rincões. O recorte do jornal dizia:
Sepultador é morto durante confronto com a guarda civil – Nesta segunda feira, 4, Antonio Z., 29, conhecido por Trindade, morreu após ter recebido forte pancada na cabeça, durante confronto com a guarda civil.
Trindade tinha assumido a diretoria norte da Federação Nacional dos Coveiros - FENACOVEIRO, e com o grupo de inumadores da empresa operadora dos serviços funerários, VIAMORTES, promovia manifestação pacífica em frente ao Palácio do Governo.
Testemunhas afirmam que a ação da guarda foi truculenta, avançando sobre a massa pacífica sem motivação aparente.
No confronto Trindade e outros nove inumadores foram brutalmente atingidos com cassetetes e escudos.
Todos foram atendidos no Hospital AA. Seis foram liberados após atendimento e passam bem. Três estão em observação e, segundo os médicos, correm risco de morte.
Trindade não resistiu aos ferimentos e faleceu. Seu sepultamento será feito pelos próprios colegas na Igreja Bartolomeu – Ralinho, pois a concessionária VIAMORTES não permitiu que o corpo fosse enterrado em suas dependências.
Sua morte motivou a greve, indignação e sede de justiça. Todos ergueram os seus braços e decidiram pela greve.

domingo, 8 de julho de 2012


XXIX - SEMENTE FECUNDADA
O impacto do falatório perdurou dois dias sem que os colegas dissessem nada uns aos outros sobre a causa proposta.
Guinariam suas vidas?
Estavam todos evidentemente mudados de comportamento e semblantes. Tinha algo de robótico ou instintivo nas tarefas que executavam – abaixavam esquifes de forma mecânica e silenciosamente, impressionava encaixarem-nos sem percalço nas gavetas pretendidas. Abriam covas sem se deterem nos cuidados do perímetro escavado, e faziam-no usualmente tudo certo e rápido.
No terceiro dia, entretanto, um caminhão que parou em frente ao portão mais próximo do refeitório danou a buzinar. Eram os sepultadores do cemitério Roxo. Vieram buscar o time do cemitério Verde para uma pelada, como tinham combinado mês passado.
Os verdeanos surpreendidos largaram seus distanciamentos, pois estavam justamente combinados que apenas os plantonistas ficariam; aos demais estava permitida a saída antecipada em troca da compensação no período de preparação do cemitério para o feriado de finados próximo.
No aterro dos fundos do cemitério Roxo, uniformizados, o escrete verde estava posicionado, aguardando o apito inicial.
Cinco minutos de partida, um lance alteraria o ânimo das equipes: um sepultador roxeano entrou de sola num verde e o contundiu seriamente. O roxeano era formado na cultura do tesão pela violência. Era cheio de si e tudo era questão de honra, de brio, de superioridade física; seguia a lei do mais forte.
Início de refrega generalizada. Sopapos e pontapés. Um roxeano deu tiros para o alto para por fim à briga. Teve êxito. Cada grupo carregou seu ódio para o vestiário.
Os roxeanos, tramando revanche e vingança da defensiva verde, foram visitados inesperadamente por Laurenciano.
Num momento esboçaram agredi-lo, mas se detiveram graças à sinceridade de seus olhos.
No vestiário verde os contendores estavam precavidos contra qualquer possível agressão a Laurenciano, que a contragosto do time, saíra resoluto do plano de reconquistar os colegas do cemitério irmão e trazê-los para a causa mencionada na reunião de três antes.
O coveiro revolucionário regressou hora depois, seguido dos roxeanos que, ante o sobressalto dos verdes, de pronto se desculparam, anunciaram solidariedade às reivindicações e ofereceram o espaço físico para as próximas reuniões do grupo, do qual desde já solenemente faziam parte.
Estava relativamente fácil convencer os companheiros da categoria da importância da causa. Se havia dificuldade o era em função do medo, do complexo de inferioridade que sentiam, e principalmente, do fato de serem gerações cevadas nas mentiras contadas pelos patrocinadores dessa maneira de viver, transpiradas em tudo.
Laurenciano traçou um cronograma de visitações aos outros cemitérios do país, e levando em consideração férias, licença, fins de semana e feriados prolongados, organizou grupos pequenos, pares ou visitas individuais.
O Retardatário visitou e trouxe o parecer favorável dos sepultadores de dez necrópoles do Sul.
Porca e Miguelito chamaram os colegas do Cemitério Azul, e durante suas férias – tiravam férias juntos - granjearam os cemitérios do interior e de lá anunciaram a adesão de quinze deles.
Estava em gestação a Federação Nacional dos Coveiros – FENACOVEIRO.
Trataram de formalizar a entidade numa pauta de reivindicações e designaram comissão para parlamentar com o presidente da Associação dos Cemitérios Privados.

terça-feira, 3 de julho de 2012


XXVIII - VENTO REVOLUCIONÁRIO - BRISA DE INSATISFAÇÃO
Uma ventania soprava violenta sob um céu negro de indescritível melancolia.
À exceção do plantão, todos jaziam adormecidos na sala multifuncional onde cabia deitarem-se.
Não houve varrição e os serviços de manutenção dos muros e capelas foram adiados para dia de melhores climas.
O céu não resistiu e caiu em pingos grossos e esparsos, entoando uma melodia etérea.
Com a chuva, algum espectro gelado tomou de assalto as almas dos sepultadores adormecidos e, um a um, desembestaram a revelar seus sonhos.
Verbalizaram seus desejos, seus ódios e medos.
A primeira alma decodificada foi a de Laurenciano: “Por que você me fez agir assim? Eu nunca machuquei ninguém, e você me fez te bater... Com técnica fizestes... Não fui eu quem te vazou sangue... Os hematomas... Machuquei... Nódoa. Ah! Se os autores pudessem me confortar explicando exatamente o êxtase ou a finalidade dessa violência consentida... Quem mais sofre, ou quem mais se beneficia? Que cérebro inflama de alegria? Que coração se regozija? Que deus permissivo não objeta? A violência... A violência do gozo, da fome, da miséria, da gramática, da criminalidade... do mundo...”
Ao delírio de Laurenciano concatenou-se o de Macarrão: “Se me encher o saco eu deixo essa merda apodrecer aí mesmo! Eu não matei minha mãe pra guentar isso e me fingir de feliz! Eu deixo e não enterro mais porra nenhuma! Aí eu quero vê o que cê vai fazer.”
Sucedeu o delírio de Burquinha: “Ôôô Porca! Ôôô Porca! Seu pai ficou doente e faleceu. Seus filhos estão mal e ninguém quis saber de nada... Eu também fui injustiçado! Levei o trabalho nas costas, o cemitério todo durante esses ano... peguei bandido, falei na televisão... já enterrei tanta gente, já exumei bastante... Poxa! Então por que eu sou assim tão corno? Tão bobo? Tão...”
Seguiu-se o Retardatário: “Puta que pariu essa merda toda! Vou-me embora daqui... voltar pro Sul. Pelo menos posso me empregar numa firma onde não precise me desdobrar tanto para levar conforto, comida pros meus filhos... e não vou ter que suportar essa pressão, essa piãozada filha da puta!”
Sucessivamente desfiaram suas mazelas, angústias e horrores. Até medo de morte saiu – “(...) eu não quero morrer... tenho medo!” – da boca de Carlito.
Acordaram, curiosamente, ao mesmo tempo. Convergiram para a mesa de reunião – que também era de almoço, lanche, descanso e carteado – ao chamado de Laurenciano.
- Colegas! Eu tive um sentimento de inutilidade! Precisamos agir. Precisamos relacionar num papel uma pauta de reivindicações. Precisamos de mais ambientes. Não tem cabimento uma só sala para todas as nossas atividades. Precisamos de equipamentos de proteção; precisamos de acompanhamento médico periódico, de espaço de convivência com livros e música, e principalmente, precisamos de melhores remunerações. Depois que a gente relacionar tudo o que precisa, montamos uma comissão que vai falar com os caras, ou com o presidente da República, e se for preciso com o Papa, sobre nossas vidas e necessidades. – falou o seu discurso de pé numa banqueta, em clara e audível oratória.
Continuou: “Vamos reunir os funcionários, colegas de todos os outros seis cemitérios da cidade, fazer intercâmbio com os sepultadores das outras cidades e estados do país. Devemos nos unir também contra os preconceitos raciais, sexuais, políticos; contra a discriminação dos idosos, contra o abando das crianças de rua; contra a falta de informação, de educação, e contra os políticos ladrões...”
- Ah! Dá licença Laurenciano! Ninguém ouve a gente! Cê tá ficando maluco, meu! Pára com isso!
- Todo mundo fala a mesma coisa: “eles não ouvem a gente, a gente não pode fazer nada, etc.”; e é por isso que a gente não sai da merda, cara! A gente fica como todo mundo: reclamando, preocupados com a vidinha da gente, com o padrãozinho de vida de merda da família. Sonhamos acordados com nossa casa, com uma vida mais decente, mais digna, e esperamos cair do céu... Do nada! Isso nunca vai cair do céu, porra!
Ficaram entusiasmados com a fluência de Laurenciano.
Ele tinha razão: se tratava de um salto das vidinhas descoloridas semi-sepultadas para a vida dadivosa a que todos temos direito.
Concordavam mas temiam as consequências de tamanha audácia.
Teriam que modificar as expectativas de suas famílias, seus filhos, suas esposas; exigia tempo, esforço e ansiedade para uma mudança mental dessa gravidade.
- Precisamos nos colocar não apenas como coveiros ou trabalhadores inconformados com salários, mas sim, como parte ativa de uma sociedade injusta. Precisamos prestar solidariedade aos irmãos necessitados de terra no campo, aos sem-teto das cidades e a tantas outras injustiças... – continuou enumerando o orador – contra os descasos com os deficientes físicos e mentais, contra o preconceito com soropositivos, contra a agressão às mulheres e crianças. Contra os vendilhões da palavra de Deus que iludem o povo para rapinarem seu minguado dinheiro... E tantas mais injustiças quantas pudermos combater.

terça-feira, 19 de junho de 2012

AS CRÔNICAS DOS COVEIROS DO CEMITÉRIO VERDE - CAPÍTULO XXVII - A ATRAÇÃO DOS BRUTOS


Que os brutos também amam é notório. O que respira, ama.
Talvez seja novo dizer que eles, os brutos, muitas vezes são mais amados do que amam - que não se convençam!
Uma porção grande de gente tem irremediável inclinação pelo que é bruto.
Talvez porque o bruto, o tosco, o rústico, o inculto, seja animalesco e mais próximo da natureza dos instintos, que a educação, na tentativa de sofisticar ou asfixiar, nalguns fracassa.
O que é animal come quando tem fome e bebe quando tem sede, trepa se tiver vontade e xinga para extravasar, se embevecendo com as felicidades corriqueiras dos cotidianos à toa.
Todavia, há os de natureza corrupta. Por submissão, desvio ou perversão, existem os que gostam de sofrer física e psicologicamente, encontrando na dor algum sentido de vida.
Como acontecia ao intérprete de Geraldo, Lupércio, que mantinha um caso extraconjugal com uma dona definitivamente masoquista. Ela exigia apanhar sem ficção, socos e chutes, ao passo que era servil como uma escrava, ou melhor, uma gueixa.
Retocava a toalete, uma mulher jovem e enlutada. Fitava no espelho descascado do banheiro cemiterial, esforçando-se para prantear o cadáver do marido, sem sequer conseguir umedecer os olhos.
Laurenciano, entretido com um livro de crônicas, caminhava alheio ao ambiente.
Depois do especial encontro consigo mesmo, Zumbizão obrou imediatas práticas, dentre as quais a leitura. Devorava como traça dos livros o âmago de qualquer autor, lendo-lhe a alma, confabulando tête-à-tête, checando a intenção de cada parágrafo, deleitando-se com cada construção particular.
Ao vislumbrá-lo, a viuvinha derreteu-se num choro tão fundo e alto, em tão dissimulado soluço que quebrou incontinenti a compenetração do coveiro.
Ele estacionou na batente sobraçando o livro, com a página marcada por uma espátula. Contemplava a bela perturbada.
Ofereceu: “A senhora precisa de alguma coisa? Quer um copo d’água ou outra coisa?”
A viúva pusilânime aproximou-se e recostou a cabeça em seu ombro, auscultou seu coração – batia forte: “Gostaria de tomar uma bebida... Tem algum lugar discreto por aqui? Você não quer ir comigo?”
Acomodados nos balcão de uma lanchonete - duas ruas além do muro alto do cemitério, discreto, como queria a viuvinha – pediam ao Mané que trouxesse uma água tônica para Laurenciano e um conhaque para a viúva. Tinham saído com tamanha discrição esgueirando-se pelos túmulos, ocultando-se entre as árvores sem chamar a atenção, que o enterro do corpo exangue do cônjuge correu sem que dessem falta da viúva.
Colóquios postos, a belezinha se recompunha dignamente insuspeita da viuvez. Na realidade não julgariam senão como garota no trajeto da balada, ou vinda duma dessas festas em que vestem apenas escuro.
- Você é casado, Laurenciano? Perguntava a mulher, intercalando as palavras com sensuais estremecimentos dos lábios reluzentes de conhaque. Reluzia-os com charmoso malabarismo dos beiços imersos no copo e breve retenção do líquido na boca semicerrada.
A imagem mexia com Laurenciano que não conseguia apartar-se da atração física que a jovem vestida de negro exercia. Dos cabelos alourados, médios para longos, o eflúvio perfumado impregnara o fundo dos olhos do sepultador. “Não, não sou...”
- Eu fui casada com o Beckmhann durante cinco anos. Ele era educado, galanteador, responsável... Fazia todos os gostos, mas... – hesitou brevemente - não me completava. Era mais pai do que homem para mim. O que eu quisesse era só pedir: carros, móveis, jóias, qualquer coisa, mas não me satisfazia, você entende? Deve entender.
Neste momento a fêmea segurou-lhe uma das mãos, acariciando os dedos da outra.
Laurenciano não queria, mas a conversa na interpretação daquela voz o excitava: “Sim, entendo.” Não queria porque a recente responsabilidade adquirida o condenava.
- Escuta! É meu coração batendo. Mas não estou triste. Estou até feliz; estou quase exultante. Vou querer outro conhaque e você? Tome um também, temos motivos para bebermos. Que horas você larga o cemitério, Laurenciano? Não gostaria dar uma volta comigo, pra conversarmos mais um pouco? Está sendo bom falar contigo!
Combinaram a hora. Pontualmente, um moderno automóvel verde abacate parou na ruela da lanchonete. Laurenciano que o esperava, correu até ele. A porta se abriu, a loura envergava um vestido cintilante e um acessório esbranquiçado enorme, dependurado no pescoço: “Entre Laurenciano. Você dirige” – ordenou, saltando para o banco de passageiro.
A louraça ia ditando o trajeto. Chegaram no prédio de luxo, na nobreza da cidade. O portão se abriu. Entraram num elevador que os deixou à entrada de um saguão de piso xadrez. Ambos mudos. Laurenciano automatizado seguiu os passos da formosa silhueta feminina.
Ela o conduziu para o interior do apartamento e sem dizer um som, despiu-se e posicionou-se de quatro no carpete felpudo.
Laurenciano, instintivamente, se conduziu, ajoelhou-se, abriu as calças e penetrou a mulher. No mesmo momento ela danou a gritar, a dar altos gemidos, dizer palavrões e arranhar o carpete. Loucura e prazer!
Repentinamente gritou para parar como uma dona faz ao cão; ergueu-se, o conduziu a outro compartimento da moradia. Arrancou-lhe as vestes. Abriu um armário embutido e sacou de um instrumento entre tantos. Entregou-lhe nas mãos, ajoelhou-se e instruiu que a castigasse alternando a felação com os insistentes rogos de punição.
Foram chibatadas nas costas e nas nádegas... Ela pedia que a machucasse. Os estampidos ecoavam por todo o enorme apartamento.
Usaram algemas e outros equipamentos de dor e submissão, tendo ao final de cada sessão uma escandalosa trepada.
De manhã, Laurenciano acordou só num colchão gigante e redondo, com amargo de arrependimento e estupefação.
Levantou-se e colocou as roupas, saiu do prédio às pressas sem que ninguém o pudesse interceptar. Entrou num ônibus em caminho de sua casa – não conseguiria trabalhar.
Tentando achar a consciência esfregou violentamente o rosto. Esbarrou o cotovelo num volume no bolso da camisa. Um envelope continha incrível soma de dinheiro - mais de quatro mil -, e um bilhete: “Foi bom! Nunca me procure. Se eu precisar, sei onde te encontrar.”
Nunca mais o procurou. O coveiro logo esqueceu sua fisionomia. Guardou na alma, no entanto, a complicada experiência.

domingo, 27 de maio de 2012

CRÔNICAS DOS COVEIROS DO CEMITÉRIO VERDE - CAPÍTULO XXVI - APARIÇÃO AUTÊNTICA


XXVI – APARIÇÃO AUTÊNTICA
Na tarde subseqüente à redenção de Laurenciano, outro acontecimento engrossaria o repertório de piadas dos sepultadores.
Duas senhoras estavam a passear pelos jardins da Necrópole. A mais nova, com mais de sessenta e cinco, como uma pajem vinha conduzindo a mais velha, regozijando-se da diferença de idade, cuja juventude a caridade lhe permitia exibir.
De instante em instante alastrava o olhar à procura de espectadores, consertando o penteado, estampando um tênue sorriso pio.
Tinham visitado um conhecido no repouso eterno e agora passeavam distraídas com as lembranças do falecido. Cada uma com suas lembranças, ambas com muita saudade.
Passavam pela quarta vez em frente da colossal estátua de São Jorge a espetar tradicionalmente um dragão que se esvaia dum sangue de bronze em alto relevo: “Linda estátua não é Hemengarda?”, pela quarta vez disse a jovem velha para a amiga mais experiente.
Mais alguns passos e escutaram um gemido cavernoso, fantasmagórico, longo, num crescendo, bem grave; não se deixaram abalar de pronto, fazendo de conta que nada ouviram.
Durou pouco o descanso: uma silhueta negra e hercúlea – agigantada mesmo! – surgiu de dentro do subterrâneo do túmulo detrás do São Jorge.
Esmeralda a babá, saiu em disparada deixando tudo para trás: a vaidade, o cansaço e a amiga velhota.
Matusalém vinha bem atrás, fazia o que considerava correr, mas sem os gritos retumbantes da outra, até que exausta estacou, arregalou os olhos e desfaleceu.
Enquanto, esbaforida, Esmeralda contava ao administrativo Lupércio o que lhes ocorrera, eis que estaciona no balcão o Geraldo, mais conhecido como Geraldão, um pitoresco negro velho de dimensões sobre-humanas.
Olhou para a queixosa e tentou lhe explicar que não quis assustar ninguém. Em vão. A mulher não lhe deu atenção - tinha problemas em falar com pessoas não brancas e se mostrava melindrada quando essa particularidade somenos era confundida com racismo.
Geraldão foi pugilista amador até trinta anos antes. Conheceu os pesos-pesados da velha-guarda, ícones do esporte, e treinou luvas com alguns.
Numa noite, tendo-se liberado do trabalho mais cedo, deu com a esposa na sua cama com um suposto amigo da casa. Matou o canalha de tanta porrada e partiu os ossos da traidora. Disseram que, desde então, a coitada não andou mais até o fim da vida.
Contudo, de tanto amor que um dia tivera pela amásia, consumido pelo remorso e desespero, tratou de providenciar a própria morte: tomou um galão de gasolina; não morreu, queimou o esôfago, danificou o cérebro e perdeu a habilidade da fala. Agora emitia o som grave e ininteligível com muito custo.
Para se fazer compreensível grunhia pausadamente, com paciência, até que descobrissem o núcleo de sua mensagem.
Tendo Lupércio como intérprete, Esmeralda – sem o rebolado de antanho – sorria amarelo, considerando o cômico da situação.
E a outra mais velha, Hemengarda, deveu o desfalecimento ao sono, pois confirmara a humanidade da aparição tão logo percebeu no negro que a encalçava, um antigo caso de mocidade. Aproveitou a ausência da amiga enfadonha e dormitou para descansar.
Esmeralda a cansava por não aceitar tão bem, como nós, o inevitável envelhecimento das células. Ainda bem que só a via duas vezes por ano!
Também porque o saudoso falecido inspirador de tantas lembranças foi esposo de Esmeralda e secretamente seu homem, até a que morte separou os três e diluiu a convivência íntima e habitual que tinham.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

RADAR COTIANO ESPECIAL - DEPARTAMENTO DE CULTURA COTIA (1-9) - 12.05.12.wmv

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domingo, 6 de maio de 2012

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A ilha da imaginação.wmv

Enquanto você dormia.wmv

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UM AMOR PARA RECORDAR.wmv

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FORREST GUMP - O CONTADOR DE HISTÓRIAS.wmv

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CRÔNICAS DOS COVEIROS DO CEMITÉRIO VERDE - CAPÍTULO XXV - A FLOR ROTUNDA

XXV - A FLOR ROTUNDA
Era outono outra vez, descabelando as árvores do campo santo.
O ruído deste ato do vento era impetuoso e dificultava ainda mais o trabalho de varrição dos homens, pois além de não vencerem as folhas, ouviam o assobio debochado do ar.
O grupo da zona Oeste do Cemitério sofria mais porque lá era desprotegido de túmulos altos e continha quantidade absurda de árvores desfolháveis. Integrava este grupo do descampado, o Zumbizão, recém chegado do Cemitério Azul, a permuta do Porca.
Zumbizão era até engraçado! Com voz tonitruante, só falava em monossílabo. Caso dissesse mais duas palavra podia esperar: ensaiava evasiva para não sepultar ou exumar ninguém. Já viram isso? Um coveiro que não enterra, nem exuma? Sui generis!
Ademais era arredio o camarada! Não conversava com ninguém, não fez colega e pouco se lhe dava o que pensavam, vivia enfurnado na sala de reuniões/vestiário ou andava à esmo pelas ruas do cemitério. Isso nos dias em que ia trabalhar, pois se ausentava, às vezes dias consecutivos, e surgia ao final com atestados médicos muito grotescamente falsos.
Naquele dia em que ventava forte e a chuva de folhas era torrencial, principalmente na zona Oeste, Zumbizão ouviu uma voz delicada que pedia socorro.
De onde viria aquela voz maviosa?
Olhou de um e outro lado, para baixo e para cima, tratou desimportante o chamamento. De novo ouviu e repetiu as direções da procura. Nada. Na terceira vez temeu.
Olhou para todo lado, caminhou dez curtos passos, subiu nos jazigos de perto e nada viu. Sacou da vassoura e brandiu contra alguma eventual tentação.
A direção da vassoura apontava na esquina com a zona Sul da Necrópole, para uma enorme escultura: uma versão católica do pranto de Nossa Senhora por seu Filho pesado da cruz. Atribuiu instantaneamente o pedido à mãe de Deus.
Enquanto andava em direção à versão da Piedade, pedia misericórdia e elaborava mil promessas caso lhe fosse concedido o perdão pela sua pachorra.
Era um de uma récua de filhos paridos ao acaso. Veio ao mundo com pouca acuidade visual que lhe obrigava a óculos pesados e de lentes bem grossas desde sempre. Por isso e pela penúria, na adolescência parou de contar os descasos. Tenro, parou de sonhar. Os dias se sucediam e bastava.
Trabalhava desde cedo em auxílio dos pais, igualmente sem paixão e sem esperança.
Aconteceu, aos dezessete, ter ingerido – até hoje afirma que foi acidental – uma superdose medicamentosa, à época para problemas gástricos.
O resultado foi o definhamento. Da depressão tornou-se companheiro desde então.
Mortos os pais, com o êxodo dos irmãos, foi abandonado à sorte, e durante vinte anos não fez senão pular de casa em casa, de parentes e conhecidos dos pais, sem enraizar.
Tinha perdido a mão das gentilezas e conveniências necessárias às relações, de maneira que ninguém suportava sua falta de higiene e desinteresse pelo trabalho e pela vida.
Julga-se vítima do caiporismo. O azar, dizia, foi o único presente que Deus lhe deu.  
Agora, amadurecido em idade, há cinco anos coveiro ingresso pela última seleção pública, vivia seus dias sem prazer e sem fé.
Ao pé da Virgem ajoelhou, fez as preces, prometeu melhorar.
Quando se ia levantando, bem no canto de onde cabia enxergar, um vermelho intenso lhe chamou a atenção.
Já desassombrado girou a cabeça e deu com uma exuberante flor que mais parecia artificial: exótica, era uma bola de vegetal vermelha aveludada. Muitas centenas de pétalas minúsculas semi-fechadas em si mesmas, côncavas, mais longas do que largas, justapostas e simetricamente ajustadas. Quase do tamanho de uma bola de futebol. Linda e fascinante!
Zumbizão colheu a flor solitária, discretamente a levou para o vestiário do outro lado e ficou a admirar o viço da planta, a beleza, a singularidade, a perfeição de suas folhas, do conjunto harmonioso.
O contraste da morte com a vida da planta tocou fundo o homem, que ele, com a rotunda flor na mão, cuidou que não fosse essencialmente infeliz, mas apenas descontente.
Nem tudo deveria ser necessariamente péssimo; tem de haver algo que o poderia animar, por exemplo, no ambiente de trabalho. Como poderia ser mais feliz fazendo suas tarefas?
Decidiu mudar a conduta, ser mais dedicado aos colegas, mais amigável, mais ativo, conversar mais, trabalhar mais e se instruir.
Todos ficaram admirados com a súbita mudança de Zumbizão, tanto que passaram a chamá-lo de Laurenciano, que, aliás, era o seu nome.
A flor bela e sensível não pedia a ninguém que se lhe igualassem em riqueza.  

GRACIAS ANDINAS