XXVIII - VENTO REVOLUCIONÁRIO - BRISA DE
INSATISFAÇÃO
Uma
ventania soprava violenta sob um céu negro de indescritível melancolia.
À
exceção do plantão, todos jaziam adormecidos na sala multifuncional onde cabia
deitarem-se.
Não
houve varrição e os serviços de manutenção dos muros e capelas foram adiados
para dia de melhores climas.
O céu
não resistiu e caiu em pingos grossos e esparsos, entoando uma melodia etérea.
Com a
chuva, algum espectro gelado tomou de assalto as almas dos sepultadores
adormecidos e, um a um, desembestaram a revelar seus sonhos.
Verbalizaram
seus desejos, seus ódios e medos.
A
primeira alma decodificada foi a de Laurenciano: “Por que você me fez agir
assim? Eu nunca machuquei ninguém, e você me fez te bater... Com técnica fizestes...
Não fui eu quem te vazou sangue... Os hematomas... Machuquei... Nódoa. Ah! Se os
autores pudessem me confortar explicando exatamente o êxtase ou a finalidade dessa
violência consentida... Quem mais sofre, ou quem mais se beneficia? Que cérebro
inflama de alegria? Que coração se regozija? Que deus permissivo não objeta? A
violência... A violência do gozo, da fome, da miséria, da gramática, da
criminalidade... do mundo...”
Ao delírio
de Laurenciano concatenou-se o de Macarrão: “Se me encher o saco eu deixo essa
merda apodrecer aí mesmo! Eu não matei minha mãe pra guentar isso e me fingir de
feliz! Eu deixo e não enterro mais porra nenhuma! Aí eu quero vê o que cê vai fazer.”
Sucedeu
o delírio de Burquinha: “Ôôô Porca! Ôôô Porca! Seu pai ficou doente e faleceu.
Seus filhos estão mal e ninguém quis saber de nada... Eu também fui
injustiçado! Levei o trabalho nas costas, o cemitério todo durante esses ano...
peguei bandido, falei na televisão... já enterrei tanta gente, já exumei bastante...
Poxa! Então por que eu sou assim tão corno? Tão bobo? Tão...”
Seguiu-se
o Retardatário: “Puta que pariu essa merda toda! Vou-me embora daqui... voltar
pro Sul. Pelo menos posso me empregar numa firma onde não precise me desdobrar
tanto para levar conforto, comida pros meus filhos... e não vou ter que
suportar essa pressão, essa piãozada filha da puta!”
Sucessivamente
desfiaram suas mazelas, angústias e horrores. Até medo de morte saiu – “(...)
eu não quero morrer... tenho medo!” – da boca de Carlito.
Acordaram,
curiosamente, ao mesmo tempo. Convergiram para a mesa de reunião – que também
era de almoço, lanche, descanso e carteado – ao chamado de Laurenciano.
- Colegas! Eu tive um sentimento de inutilidade! Precisamos
agir. Precisamos relacionar num papel uma pauta de reivindicações. Precisamos
de mais ambientes. Não tem cabimento uma só sala para todas as nossas
atividades. Precisamos de equipamentos de proteção; precisamos de
acompanhamento médico periódico, de espaço de convivência com livros e música,
e principalmente, precisamos de melhores remunerações. Depois que a gente
relacionar tudo o que precisa, montamos uma comissão que vai falar com os
caras, ou com o presidente da República, e se for preciso com o Papa, sobre
nossas vidas e necessidades. – falou o seu discurso de pé numa banqueta, em clara
e audível oratória.
Continuou:
“Vamos reunir os funcionários, colegas de todos os outros seis cemitérios da
cidade, fazer intercâmbio com os sepultadores das outras cidades e estados do
país. Devemos nos unir também contra os preconceitos raciais, sexuais,
políticos; contra a discriminação dos idosos, contra o abando das crianças de
rua; contra a falta de informação, de educação, e contra os políticos ladrões...”
- Ah! Dá licença Laurenciano! Ninguém ouve a gente! Cê tá
ficando maluco, meu! Pára com isso!
- Todo mundo fala a mesma coisa: “eles não ouvem a gente, a
gente não pode fazer nada, etc.”; e é por isso que a gente não sai da merda,
cara! A gente fica como todo mundo: reclamando, preocupados com a vidinha da
gente, com o padrãozinho de vida de merda da família. Sonhamos acordados com
nossa casa, com uma vida mais decente, mais digna, e esperamos cair do céu... Do
nada! Isso nunca vai cair do céu, porra!
Ficaram
entusiasmados com a fluência de Laurenciano.
Ele
tinha razão: se tratava de um salto das vidinhas descoloridas semi-sepultadas
para a vida dadivosa a que todos temos direito.
Concordavam
mas temiam as consequências de tamanha audácia.
Teriam
que modificar as expectativas de suas famílias, seus filhos, suas esposas;
exigia tempo, esforço e ansiedade para uma mudança mental dessa gravidade.
- Precisamos nos colocar não apenas como coveiros ou
trabalhadores inconformados com salários, mas sim, como parte ativa de uma
sociedade injusta. Precisamos prestar solidariedade aos irmãos necessitados de
terra no campo, aos sem-teto das cidades e a tantas outras injustiças... –
continuou enumerando o orador – contra os descasos com os deficientes físicos e
mentais, contra o preconceito com soropositivos, contra a agressão às mulheres
e crianças. Contra os vendilhões da palavra de Deus que iludem o povo para
rapinarem seu minguado dinheiro... E tantas mais injustiças quantas pudermos
combater.
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