terça-feira, 3 de julho de 2012


XXVIII - VENTO REVOLUCIONÁRIO - BRISA DE INSATISFAÇÃO
Uma ventania soprava violenta sob um céu negro de indescritível melancolia.
À exceção do plantão, todos jaziam adormecidos na sala multifuncional onde cabia deitarem-se.
Não houve varrição e os serviços de manutenção dos muros e capelas foram adiados para dia de melhores climas.
O céu não resistiu e caiu em pingos grossos e esparsos, entoando uma melodia etérea.
Com a chuva, algum espectro gelado tomou de assalto as almas dos sepultadores adormecidos e, um a um, desembestaram a revelar seus sonhos.
Verbalizaram seus desejos, seus ódios e medos.
A primeira alma decodificada foi a de Laurenciano: “Por que você me fez agir assim? Eu nunca machuquei ninguém, e você me fez te bater... Com técnica fizestes... Não fui eu quem te vazou sangue... Os hematomas... Machuquei... Nódoa. Ah! Se os autores pudessem me confortar explicando exatamente o êxtase ou a finalidade dessa violência consentida... Quem mais sofre, ou quem mais se beneficia? Que cérebro inflama de alegria? Que coração se regozija? Que deus permissivo não objeta? A violência... A violência do gozo, da fome, da miséria, da gramática, da criminalidade... do mundo...”
Ao delírio de Laurenciano concatenou-se o de Macarrão: “Se me encher o saco eu deixo essa merda apodrecer aí mesmo! Eu não matei minha mãe pra guentar isso e me fingir de feliz! Eu deixo e não enterro mais porra nenhuma! Aí eu quero vê o que cê vai fazer.”
Sucedeu o delírio de Burquinha: “Ôôô Porca! Ôôô Porca! Seu pai ficou doente e faleceu. Seus filhos estão mal e ninguém quis saber de nada... Eu também fui injustiçado! Levei o trabalho nas costas, o cemitério todo durante esses ano... peguei bandido, falei na televisão... já enterrei tanta gente, já exumei bastante... Poxa! Então por que eu sou assim tão corno? Tão bobo? Tão...”
Seguiu-se o Retardatário: “Puta que pariu essa merda toda! Vou-me embora daqui... voltar pro Sul. Pelo menos posso me empregar numa firma onde não precise me desdobrar tanto para levar conforto, comida pros meus filhos... e não vou ter que suportar essa pressão, essa piãozada filha da puta!”
Sucessivamente desfiaram suas mazelas, angústias e horrores. Até medo de morte saiu – “(...) eu não quero morrer... tenho medo!” – da boca de Carlito.
Acordaram, curiosamente, ao mesmo tempo. Convergiram para a mesa de reunião – que também era de almoço, lanche, descanso e carteado – ao chamado de Laurenciano.
- Colegas! Eu tive um sentimento de inutilidade! Precisamos agir. Precisamos relacionar num papel uma pauta de reivindicações. Precisamos de mais ambientes. Não tem cabimento uma só sala para todas as nossas atividades. Precisamos de equipamentos de proteção; precisamos de acompanhamento médico periódico, de espaço de convivência com livros e música, e principalmente, precisamos de melhores remunerações. Depois que a gente relacionar tudo o que precisa, montamos uma comissão que vai falar com os caras, ou com o presidente da República, e se for preciso com o Papa, sobre nossas vidas e necessidades. – falou o seu discurso de pé numa banqueta, em clara e audível oratória.
Continuou: “Vamos reunir os funcionários, colegas de todos os outros seis cemitérios da cidade, fazer intercâmbio com os sepultadores das outras cidades e estados do país. Devemos nos unir também contra os preconceitos raciais, sexuais, políticos; contra a discriminação dos idosos, contra o abando das crianças de rua; contra a falta de informação, de educação, e contra os políticos ladrões...”
- Ah! Dá licença Laurenciano! Ninguém ouve a gente! Cê tá ficando maluco, meu! Pára com isso!
- Todo mundo fala a mesma coisa: “eles não ouvem a gente, a gente não pode fazer nada, etc.”; e é por isso que a gente não sai da merda, cara! A gente fica como todo mundo: reclamando, preocupados com a vidinha da gente, com o padrãozinho de vida de merda da família. Sonhamos acordados com nossa casa, com uma vida mais decente, mais digna, e esperamos cair do céu... Do nada! Isso nunca vai cair do céu, porra!
Ficaram entusiasmados com a fluência de Laurenciano.
Ele tinha razão: se tratava de um salto das vidinhas descoloridas semi-sepultadas para a vida dadivosa a que todos temos direito.
Concordavam mas temiam as consequências de tamanha audácia.
Teriam que modificar as expectativas de suas famílias, seus filhos, suas esposas; exigia tempo, esforço e ansiedade para uma mudança mental dessa gravidade.
- Precisamos nos colocar não apenas como coveiros ou trabalhadores inconformados com salários, mas sim, como parte ativa de uma sociedade injusta. Precisamos prestar solidariedade aos irmãos necessitados de terra no campo, aos sem-teto das cidades e a tantas outras injustiças... – continuou enumerando o orador – contra os descasos com os deficientes físicos e mentais, contra o preconceito com soropositivos, contra a agressão às mulheres e crianças. Contra os vendilhões da palavra de Deus que iludem o povo para rapinarem seu minguado dinheiro... E tantas mais injustiças quantas pudermos combater.

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GRACIAS ANDINAS