domingo, 26 de agosto de 2012

CRÔNICAS DOS COVEIROS DO CEMITÉRIO VERDE - CAP. XXXI - GREVE


XXXI - GREVE
A greve, que teve início na semana subseqüente ao triste episódio, já durava quinze dias.
Repercutiu estrondosamente nos meios de comunicação.
Por todo canto, os cadáveres apinhavam-se nos portais dos cemitérios, nos hospitais e igrejas; o ar era irrespirável.
Uma comissão foi chamada a debater e obteve promessas de reavaliação da insalubridade, aumento salarial, escalonamento de folgas, adicional de penosidade, planos de cargos e carreira, assistência médica e odontológica, entre outros itens da pauta original.
Cessaram a paralisação ameaçando retomá-la em breve se não fossem cumpridas as exigências, sobretudo a apuração e punição dos assassinos de Trindade.
Retornaram aos trabalhos imediatamente para normalizar a caótica situação, determinando que os fornecessem sem demora equipamentos de proteção e segurança. Pela primeira vez a classe recebeu material tinindo de novo – eram botas com revestimento duplo, luvas térmicas, luvas descartáveis, três jogos de uniforme, máscaras protetoras e tudo o mais necessário para o enterramento em massa.
O trabalho empatou: zero a zero em três dias.
As visitações aos cemitérios se multiplicaram em muito além dos frequentadores habituais.
Visitantes de outros segmentos da sociedade compareceram: repórteres, estudantes, religiosos, lideranças negras e homossexuais.
Os repórteres queriam matérias para os seus jornais. Os estudantes estavam à procura de temas para trabalhos acadêmicos. Os representantes das minorias estavam em solidariedade.
Os visitantes habituais sim, estes serviram de fiel da balança à ilusória aceitação do movimento pelo grande público.
Segundo enquete realizada por Burquinha, mais de oitenta e cinco por cento era terminantemente contra a greve; outros mais de cinco por cento dos entrevistados acreditaram mesmo absurda a idéia de coveiros terem ousadia de formar alguma entidade e reivindicar direitos.
Quatro por cento se negaram a comentar. Menos de um por cento: essa a proporção do apoio popular.
A estatística pungia o coração dos sepultadores.
O tempo corria de par com a vontade da categoria de ter melhorias atendidas.
Nada mudara. Então reiniciaram a greve. Desta vez com a firmeza de só retornarem com negociações acompanhadas pela imprensa e pareceres de autoridades trabalhistas devidamente registrados.
A greve se alastrou por todo país. Em algumas regiões se seguiram conflitos e confusões.
Nos interiores houve pressão dos prefeitos, dos religiosos, da polícia e das populações. Chegaram notícias de confrontos entre sepultadores e as guardas municipais, demissões em massa, ataques e apedrejamento às casas de coveiros... Tiros... Mortes...
Esteve presente no Cemitério Verde o presidente da Associação dos Cemitérios Privados, acompanhado de muitos assessores, jornalistas e próceres políticos.
Não cederam sequer a questões menores como adaptação das acomodações e pagamento integral das horas extras com índices e cálculos equiparados aos dos demais trabalhadores da nação.
Sua contraproposta ficou muitíssimo aquém das expectativas dos trabalhadores. A greve continuou.
Acumulavam-se os féretros.  Alguns caixões estavam estourados. Outros, menos resistentes deixavam vazar fluídos cadavéricos.
As forças do exército, bombeiros e policiais foram chamadas para se ocuparem de enterrar os esquifes que já somavam mais de três milhões.
A resistência era férrea dos dois lados.
A atrapalhação dos assessores de todas as esferas de governo desconcertava os chefes executivos e minava antecipadamente as futuras candidaturas.
A sociedade estava em comoção pelo terror das doenças de transmissão aérea.  O povo mascarou-se contra a atmosfera infecta. Uma tonelada de especialistas da saúde falava diuturnamente nas televisões.
Os homens inaptos trabalhavam alucinantemente sob orientações técnicas de autoridades sanitárias, mas não conseguiam vencer a tarefa, além de que, em meio ao bulício e atividade frenéticos, não fechavam adequadamente as paredes mortuárias. Contrariavam a profundidade mínima exigida pelo olfato humano nos sepultamentos em covas aterradas.
Realmente as forças armadas, os homens de segurança e salvamento não tinham eficiência necessária para rechaçar quadro tão dantesco.
Os funcionários do Cemitério Verde e toda categoria foram sumariamente exonerados, uma vez que os tribunais julgaram o abandono de serviço essencial. A greve foi julgada ilegal.
Seus líderes e famílias foram perseguidos.
Durante as três semanas de greve desde o recomeço, iam às ruas pela manhã e apresentavam seus discursos e faixas; depois voltavam para suas casas, assediadas por oceanos de gentes indignadas.
Sofreram ofensas verbais e graves agressões físicas.
Os que tinham mulher e filhos os levaram para o cemitério e decidiram não mais arredar o pé enquanto as demissões não fossem anuladas e as reivindicações atendidas.
Outra vez os institutos mostraram sua intransigência, escusando-se de apresentar razões ou inclinação para solução pacífica - forma, aliás, pelas quais parece terem se cristalizado.
As autoridades policiais, sanitárias, executivas, legislativas e judiciárias não toleraram mais de quatro reuniões com os coveiros. Determinaram a imediata remoção dos revoltosos.
Nos meios de comunicação pouquíssimos analisavam as circunstâncias à luz da razão. No mais, muita notícia tendenciosa e desinformação. As bocas já diziam horrores de um conflito armado.

GRACIAS ANDINAS