XXXI - GREVE
A greve,
que teve início na semana subseqüente ao triste episódio, já durava quinze dias.
Repercutiu
estrondosamente nos meios de comunicação.
Por todo
canto, os cadáveres apinhavam-se nos portais dos cemitérios, nos hospitais e
igrejas; o ar era irrespirável.
Uma
comissão foi chamada a debater e obteve promessas de reavaliação da insalubridade,
aumento salarial, escalonamento de folgas, adicional de penosidade, planos de
cargos e carreira, assistência médica e odontológica, entre outros itens da
pauta original.
Cessaram
a paralisação ameaçando retomá-la em breve se não fossem cumpridas as
exigências, sobretudo a apuração e punição dos assassinos de Trindade.
Retornaram
aos trabalhos imediatamente para normalizar a caótica situação, determinando
que os fornecessem sem demora equipamentos de proteção e segurança. Pela
primeira vez a classe recebeu material tinindo de novo – eram botas com
revestimento duplo, luvas térmicas, luvas descartáveis, três jogos de uniforme,
máscaras protetoras e tudo o mais necessário para o enterramento em massa.
O
trabalho empatou: zero a zero em três dias.
As visitações
aos cemitérios se multiplicaram em muito além dos frequentadores habituais.
Visitantes
de outros segmentos da sociedade compareceram: repórteres, estudantes,
religiosos, lideranças negras e homossexuais.
Os
repórteres queriam matérias para os seus jornais. Os estudantes estavam à
procura de temas para trabalhos acadêmicos. Os representantes das minorias
estavam em solidariedade.
Os
visitantes habituais sim, estes serviram de fiel da balança à ilusória aceitação
do movimento pelo grande público.
Segundo enquete
realizada por Burquinha, mais de oitenta e cinco por cento era terminantemente
contra a greve; outros mais de cinco por cento dos entrevistados acreditaram
mesmo absurda a idéia de coveiros terem ousadia de formar alguma entidade e
reivindicar direitos.
Quatro
por cento se negaram a comentar. Menos de um por cento: essa a proporção do
apoio popular.
A
estatística pungia o coração dos sepultadores.
O tempo
corria de par com a vontade da categoria de ter melhorias atendidas.
Nada
mudara. Então reiniciaram a greve. Desta vez com a firmeza de só retornarem com
negociações acompanhadas pela imprensa e pareceres de autoridades trabalhistas devidamente
registrados.
A greve
se alastrou por todo país. Em algumas regiões se seguiram conflitos e confusões.
Nos interiores
houve pressão dos prefeitos, dos religiosos, da polícia e das populações.
Chegaram notícias de confrontos entre sepultadores e as guardas municipais,
demissões em massa, ataques e apedrejamento às casas de coveiros... Tiros... Mortes...
Esteve
presente no Cemitério Verde o presidente da Associação dos Cemitérios Privados,
acompanhado de muitos assessores, jornalistas e próceres políticos.
Não cederam
sequer a questões menores como adaptação das acomodações e pagamento integral
das horas extras com índices e cálculos equiparados aos dos demais
trabalhadores da nação.
Sua
contraproposta ficou muitíssimo aquém das expectativas dos trabalhadores. A
greve continuou.
Acumulavam-se
os féretros. Alguns caixões estavam
estourados. Outros, menos resistentes deixavam vazar fluídos cadavéricos.
As
forças do exército, bombeiros e policiais foram chamadas para se ocuparem de
enterrar os esquifes que já somavam mais de três milhões.
A
resistência era férrea dos dois lados.
A
atrapalhação dos assessores de todas as esferas de governo desconcertava os
chefes executivos e minava antecipadamente as futuras candidaturas.
A
sociedade estava em comoção pelo terror das doenças de transmissão aérea. O povo mascarou-se contra a atmosfera infecta.
Uma tonelada de especialistas da saúde falava diuturnamente nas televisões.
Os
homens inaptos trabalhavam alucinantemente sob orientações técnicas de
autoridades sanitárias, mas não conseguiam vencer a tarefa, além de que, em
meio ao bulício e atividade frenéticos, não fechavam adequadamente as paredes
mortuárias. Contrariavam a profundidade mínima exigida pelo olfato humano nos
sepultamentos em covas aterradas.
Realmente
as forças armadas, os homens de segurança e salvamento não tinham eficiência necessária
para rechaçar quadro tão dantesco.
Os
funcionários do Cemitério Verde e toda categoria foram sumariamente exonerados,
uma vez que os tribunais julgaram o abandono de serviço essencial. A greve foi
julgada ilegal.
Seus
líderes e famílias foram perseguidos.
Durante
as três semanas de greve desde o recomeço, iam às ruas pela manhã e apresentavam
seus discursos e faixas; depois voltavam para suas casas, assediadas por oceanos
de gentes indignadas.
Sofreram
ofensas verbais e graves agressões físicas.
Os que
tinham mulher e filhos os levaram para o cemitério e decidiram não mais arredar
o pé enquanto as demissões não fossem anuladas e as reivindicações atendidas.
Outra
vez os institutos mostraram sua intransigência, escusando-se de apresentar razões
ou inclinação para solução pacífica - forma, aliás, pelas quais parece terem se
cristalizado.
As
autoridades policiais, sanitárias, executivas, legislativas e judiciárias não
toleraram mais de quatro reuniões com os coveiros. Determinaram a imediata remoção
dos revoltosos.
Nos meios
de comunicação pouquíssimos analisavam as circunstâncias à luz da razão. No
mais, muita notícia tendenciosa e desinformação. As bocas já diziam horrores de
um conflito armado.