terça-feira, 28 de outubro de 2014

Vamos parar de criancice?

Vamos parar de criancice?


Pensei na letra da música Brasil, do Cazuza, como uma ode, um manifesto eufórico, uma homenagem à grande mobilização (e mesmo à expressiva abstenção) popular no pleito eleitoral do ano.
Mas as eleições foram o fogo de rastilho da maior demonstração de quebra de hipocrisia dos dias desengraçados da nossa vidinha nacional.
Portanto, resolvi deixar a letra pra lá porque considerei a incrível hipótese de que algum maníaco da conspiração mundial pudesse vir a abastecer a internet com vídeos, por vezes grotescos, sobre o possível assassinato do poeta-cantor por potestades “paracapitalistas donas do mundo” - daí minha intenção seria desprezada.
Também desisti da letra ante a possibilidade de que ela não só fosse contraproducente como poderia acabar servindo de munição de revide para os valorosos destinatários do texto – os pretensos militantes ideologizados de ocasião - a quem gostaria de registrar e enaltecer a honestidade, mas para cujos vícios, no entanto, desejo expressar meu repúdio.
Repudio porque tenho o direito, e todos o têm: o direito de livre-expressar o próprio juízo sobre o que nos cerca, e até das coisas sobre as quais muitas vezes nem sabemos direito como funcionam.
Mas veja! Não entender como funciona um mecanismo qualquer ou por que motivo um pensamento nasceu, não nos permite desautorizar ou atacar ofensivamente seu autor. Ignorar que uma lei exista, com prescrição de pena e tudo, não nos isenta de sentir seus efeitos.
Então, caros príncipes e princesas, nobres e plebeus, tomem cuidado com o que estão postando nas redes, pois numa república em estado democrático de direito somos todos cidadãos!
Vamos primeiro ao elogio, que faço rasgado e sincero: parabéns a todos que saíram do armário da convivência imbecilizante do politicamente correto. Ora, dizer que o Brasil é um país de iguais oportunidades para seus multicoloridos habitantes, que sobre a cabeça desse povo dégradé paira e brilha o sol da democracia, igualdade e respeito?! Mentira! Que o mundo é justo e que nós desejamos, do fundo do coração, que todos os desafortunados e famintos se abasteçam, enriqueçam e participem dos mercados?! De plenos pulmões digo: mentira!!! (com muita exclamação)
Desenganados os que apregoaram a morte da ideologia: ela existe.
Pouquíssimos de nós sabe o que é ou para que serve a bolsa de valores, a taxa de câmbio, a taxa Selic, o spread bancário, a inflação, a previdência social, o imposto de renda, o fundo de garantia, as relações exteriores, a exportação e a importação; o que seria recessão ou produtividade, república presidencialista, ou programas e políticas de governo e de estado; ou leu a constituição, ou alguma vez discutiu o que é educação, cultura, habitação e segurança; ou se importou com a composição dos preços das tarifas públicas; nem discute política ou partido ou fundo de campanha, nem mobilidade urbana; ou foi alguma vez a alguma sessão parlamentar, ou sequer entende o que representa estatizar ou privatizar. Na verdade, a maioria de nós não sabe e nem quer saber. Uma parte maior ainda tem raiva de quem sabe e odeia política!
Quase toda riqueza está em poucas mãos. A maioria de nós é zé povinho que luta, trabalha, estuda e corre atrás de dias melhores para nós e nossos filhos e filhas.
De repente um camarada cheio de grosseria e lábia, com reputação pública duvidosa e questões mal explicadas, desconhecido no amplo cenário nacional, personifica a elite com dentes na boca – como disse um cartola do futebol -, que fala ou arranha outro idioma qualquer e atropela sem misericórdia a língua mãe; vai à balada, janta fora, toma um pileque de vinho e vive botando selfie na porcaria do facebook. Nota: a elite é relativamente pequena. Outra nota: a elite quer e precisa ser por natureza, pequena. Senão não seria elite!
Do outro lado uma senhora [embora com uma inegável história de luta contra a ditadura militar no Brasil – diga-se de passagem: a esmagadora maioria de nós também não sabe do que se trata] que tem evidentes... não... gritantes pendências sobre corrupção em seu governo, incorpora a renovação e é tida como redentora do país. Nota: é a maior parte do país – disse do país e não dos votos, OK?
Caraca! Que enormidade! Porque houve estreita diferença do número de votos não significa que existem dois grupos proporcionais a rachar o Brasil! Que absurdo! Ora, faça-me o favor!
Existem, sim, pessoas infantis que não aceitaram a soberania da urna.
Caso haja suspeita de fraude, que ela deva ser apurada com caminhos e providências adequadas.
Príncipes e princesas, nobres e plebeus, procurem seus representantes político-partidários, registrem petições nas autoridades públicas competentes, mas parem de entupir as redes com rancor e ódio porque não ganharam o presentinho de natal!
Desse jeito fica parecendo o Lord Farquaad no primeiro filme do Shrek, que faz um esforço insano para ser rei num mundo perfeito, do qual devem ser expurgados os desinfelizes personagens dos contos de fadas. Faça-me o favor!
Vejam os protagonistas das redes nestes tempos: a histeria da dançarina (disseram que é dançarina) no yutube, ou do pedante colunista barriga-verde da Globo, ou da gaúcha chorona que veste seus macaquinhos de pelúcia com a camisa do time adversário, mas que não se considera racista. E as redes sociais em si, uma onda em que muitos covardes surfam escondendo seus ranços; clamando por vingança a um deus minúsculo qualquer; amaldiçoando conterrâneos, insultando compatriotas, compartilhando memes risíveis e infamantes, e frases apócrifas, e estatísticas falsas; escamoteando – ou não – virulentas ideias esnobes, sugestões violentas, intolerantes, antidemocráticas, racistas, xenófobas.
Também os adversários rubros inflamados, pretensamente libertários, militantes igualmente imbecilizados por uma causa (qual é a causa mesmo?), não raro sopitando no peito o ressentimento por não serem melhores e mais abastados consumidores.
Dois grupos numa disputa nonsense por causa de nomes circunstanciais, clãs ancestrais combatendo por um deus de pau, um ídolo de ferro, um avatar, um mito, um messias.
Dois ângulos do mesmo problema: massa de manobra, míope, em eterna crise existencial, sedenta de autoestima e de orgulho pátrio; um coletivo carente de um país para chamar de seu, que o olhe, que o cuide, que o ame, e a que ele deseja amar.
Parecemos crianças numa creche ou num orfanato, desesperadas para voltar para casa, para os braços dos pais, ou encontrar alguém que nos dê o afeto e a proteção de uma família.
Mas a letra da música tem no primeiro verso do estribilho: “Brasil, mostra a tua cara”!
A cara está aí, e não é muito bonita, não! Os habitantes daqui não se entendem como povo porque não entendem o país como uma nação.
O Brasil é grande, dividido e subdividido em unidades políticas, sotaques, culturas, cores, sons e imagens. Tem gente boa e gente ruim como todo lugar. Está sujeito a imposições dos mercados internacionais como todo o planeta, e tem graves problemas domésticos como o mundo.
Vamos cooperar? Vamos parar de criancice?


GRACIAS ANDINAS