Vamos parar de criancice?
Pensei
na letra da música Brasil, do Cazuza,
como uma ode, um manifesto eufórico, uma homenagem à grande mobilização (e
mesmo à expressiva abstenção) popular no pleito eleitoral do ano.
Mas
as eleições foram o fogo de rastilho da maior demonstração de quebra de
hipocrisia dos dias desengraçados da nossa vidinha nacional.
Portanto,
resolvi deixar a letra pra lá porque considerei a incrível hipótese de que
algum maníaco da conspiração mundial pudesse vir a abastecer a internet com vídeos,
por vezes grotescos, sobre o possível assassinato do poeta-cantor por
potestades “paracapitalistas donas do mundo”
- daí minha intenção seria desprezada.
Também
desisti da letra ante a possibilidade de que ela não só fosse contraproducente como
poderia acabar servindo de munição de revide para os valorosos destinatários do
texto – os pretensos militantes ideologizados de ocasião - a quem gostaria de registrar
e enaltecer a honestidade, mas para cujos vícios, no entanto, desejo expressar
meu repúdio.
Repudio
porque tenho o direito, e todos o têm: o direito de livre-expressar o próprio juízo
sobre o que nos cerca, e até das coisas sobre as quais muitas vezes nem sabemos
direito como funcionam.
Mas
veja! Não entender como funciona um mecanismo qualquer ou por que motivo um pensamento
nasceu, não nos permite desautorizar ou atacar ofensivamente seu autor. Ignorar
que uma lei exista, com prescrição de pena e tudo, não nos isenta de sentir
seus efeitos.
Então,
caros príncipes e princesas, nobres e plebeus, tomem
cuidado com o que estão postando nas redes, pois numa república em estado
democrático de direito somos todos cidadãos!
Vamos
primeiro ao elogio, que faço rasgado e sincero: parabéns a todos que saíram do
armário da convivência imbecilizante do politicamente correto. Ora, dizer que o
Brasil é um país de iguais oportunidades para seus multicoloridos habitantes,
que sobre a cabeça desse povo dégradé paira e brilha o sol da democracia,
igualdade e respeito?! Mentira! Que o mundo é justo e que nós desejamos, do
fundo do coração, que todos os desafortunados e famintos se abasteçam,
enriqueçam e participem dos mercados?! De plenos pulmões digo: mentira!!! (com
muita exclamação)
Desenganados
os que apregoaram a morte da ideologia: ela existe.
Pouquíssimos
de nós sabe o que é ou para que serve a bolsa de valores, a taxa de câmbio, a
taxa Selic, o spread bancário, a inflação, a previdência social, o imposto de
renda, o fundo de garantia, as relações exteriores, a exportação e a
importação; o que seria recessão ou produtividade, república presidencialista, ou
programas e políticas de governo e de estado; ou leu a constituição, ou alguma
vez discutiu o que é educação, cultura, habitação e segurança; ou se importou
com a composição dos preços das tarifas públicas; nem discute política ou
partido ou fundo de campanha, nem mobilidade urbana; ou foi alguma vez a alguma
sessão parlamentar, ou sequer entende o que representa estatizar ou privatizar.
Na verdade, a maioria de nós não sabe e nem quer saber. Uma parte maior ainda
tem raiva de quem sabe e odeia política!
Quase
toda riqueza está em poucas mãos. A maioria de nós é zé povinho que luta, trabalha, estuda e corre atrás de dias
melhores para nós e nossos filhos e filhas.
De
repente um camarada cheio de grosseria e lábia, com reputação pública duvidosa
e questões mal explicadas, desconhecido no amplo cenário nacional, personifica
a elite com dentes na boca – como disse um cartola do futebol -, que fala ou
arranha outro idioma qualquer e atropela sem misericórdia a língua mãe; vai à
balada, janta fora, toma um pileque de vinho e vive botando selfie na porcaria do
facebook. Nota: a elite é relativamente pequena. Outra nota: a elite quer e
precisa ser por natureza, pequena. Senão não seria elite!
Do
outro lado uma senhora [embora com uma inegável história de luta contra a
ditadura militar no Brasil – diga-se de passagem: a esmagadora maioria de nós
também não sabe do que se trata] que tem evidentes... não... gritantes
pendências sobre corrupção em seu governo, incorpora a renovação e é tida como
redentora do país. Nota: é a maior parte do país – disse do país e não dos
votos, OK?
Caraca!
Que enormidade! Porque houve estreita diferença do número de votos não
significa que existem dois grupos proporcionais a rachar o Brasil! Que absurdo!
Ora, faça-me o favor!
Existem,
sim, pessoas infantis que não aceitaram a soberania da urna.
Caso
haja suspeita de fraude, que ela deva ser apurada com caminhos e providências
adequadas.
Príncipes e princesas, nobres e plebeus,
procurem seus representantes político-partidários, registrem petições nas
autoridades públicas competentes, mas parem de entupir as redes com rancor e
ódio porque não ganharam o presentinho de natal!
Desse
jeito fica parecendo o Lord Farquaad no primeiro filme do Shrek, que faz um
esforço insano para ser rei num mundo perfeito, do qual devem ser expurgados os
desinfelizes personagens dos contos de fadas. Faça-me o favor!
Vejam
os protagonistas das redes nestes tempos: a histeria da dançarina (disseram que
é dançarina) no yutube, ou do pedante colunista barriga-verde da Globo, ou da
gaúcha chorona que veste seus macaquinhos de pelúcia com a camisa do time adversário,
mas que não se considera racista. E as redes sociais em si, uma onda em que
muitos covardes surfam escondendo seus ranços; clamando por vingança a um deus
minúsculo qualquer; amaldiçoando conterrâneos, insultando compatriotas, compartilhando
memes risíveis e infamantes, e frases
apócrifas, e estatísticas falsas; escamoteando – ou não – virulentas ideias esnobes,
sugestões violentas, intolerantes, antidemocráticas, racistas, xenófobas.
Também
os adversários rubros inflamados, pretensamente libertários, militantes
igualmente imbecilizados por uma causa (qual é a causa mesmo?), não raro
sopitando no peito o ressentimento por não serem melhores e mais abastados consumidores.
Dois
grupos numa disputa nonsense por
causa de nomes circunstanciais, clãs ancestrais combatendo por um deus de pau,
um ídolo de ferro, um avatar, um mito, um messias.
Dois
ângulos do mesmo problema: massa de manobra, míope, em eterna crise existencial,
sedenta de autoestima e de orgulho pátrio; um coletivo carente de um país para
chamar de seu, que o olhe, que o cuide, que o ame, e a que ele deseja amar.
Parecemos
crianças numa creche ou num orfanato, desesperadas para voltar para casa, para
os braços dos pais, ou encontrar alguém que nos dê o afeto e a proteção de uma
família.
Mas
a letra da música tem no primeiro verso do estribilho: “Brasil, mostra a tua
cara”!
A
cara está aí, e não é muito bonita, não! Os habitantes daqui não se entendem
como povo porque não entendem o país como uma nação.
O
Brasil é grande, dividido e subdividido em unidades políticas, sotaques,
culturas, cores, sons e imagens. Tem gente boa e gente ruim como todo lugar.
Está sujeito a imposições dos mercados internacionais como todo o planeta, e
tem graves problemas domésticos como o mundo.
Vamos
cooperar? Vamos parar de criancice?
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