XXV - A FLOR ROTUNDA
Era
outono outra vez, descabelando as árvores do campo santo.
O ruído
deste ato do vento era impetuoso e dificultava ainda mais o trabalho de varrição
dos homens, pois além de não vencerem as folhas, ouviam o assobio debochado do
ar.
O grupo
da zona Oeste do Cemitério sofria mais porque lá era desprotegido de túmulos
altos e continha quantidade absurda de árvores desfolháveis. Integrava este
grupo do descampado, o Zumbizão, recém chegado do Cemitério Azul, a permuta do
Porca.
Zumbizão
era até engraçado! Com voz tonitruante, só falava em monossílabo. Caso dissesse
mais duas palavra podia esperar: ensaiava evasiva para não sepultar ou exumar
ninguém. Já viram isso? Um coveiro que não enterra, nem exuma? Sui generis!
Ademais
era arredio o camarada! Não conversava com ninguém, não fez colega e pouco se
lhe dava o que pensavam, vivia enfurnado na sala de reuniões/vestiário ou
andava à esmo pelas ruas do cemitério. Isso nos dias em que ia trabalhar, pois
se ausentava, às vezes dias consecutivos, e surgia ao final com atestados
médicos muito grotescamente falsos.
Naquele
dia em que ventava forte e a chuva de folhas era torrencial, principalmente na
zona Oeste, Zumbizão ouviu uma voz delicada que pedia socorro.
De onde
viria aquela voz maviosa?
Olhou de
um e outro lado, para baixo e para cima, tratou desimportante o chamamento. De
novo ouviu e repetiu as direções da procura. Nada. Na terceira vez temeu.
Olhou
para todo lado, caminhou dez curtos passos, subiu nos jazigos de perto e nada
viu. Sacou da vassoura e brandiu contra alguma eventual tentação.
A
direção da vassoura apontava na esquina com a zona Sul da Necrópole, para uma
enorme escultura: uma versão católica do pranto de Nossa Senhora por seu Filho
pesado da cruz. Atribuiu instantaneamente o pedido à mãe de Deus.
Enquanto
andava em direção à versão da Piedade,
pedia misericórdia e elaborava mil promessas caso lhe fosse concedido o perdão pela
sua pachorra.
Era um
de uma récua de filhos paridos ao acaso. Veio ao mundo com pouca acuidade visual
que lhe obrigava a óculos pesados e de lentes bem grossas desde sempre. Por
isso e pela penúria, na adolescência parou de contar os descasos. Tenro, parou
de sonhar. Os dias se sucediam e bastava.
Trabalhava
desde cedo em auxílio dos pais, igualmente sem paixão e sem esperança.
Aconteceu,
aos dezessete, ter ingerido – até hoje afirma que foi acidental – uma superdose
medicamentosa, à época para problemas gástricos.
O
resultado foi o definhamento. Da depressão tornou-se companheiro desde então.
Mortos
os pais, com o êxodo dos irmãos, foi abandonado à sorte, e durante vinte anos
não fez senão pular de casa em casa, de parentes e conhecidos dos pais, sem
enraizar.
Tinha
perdido a mão das gentilezas e conveniências necessárias às relações, de
maneira que ninguém suportava sua falta de higiene e desinteresse pelo trabalho
e pela vida.
Julga-se
vítima do caiporismo. O azar, dizia, foi o único presente que Deus lhe deu.
Agora,
amadurecido em idade, há cinco anos coveiro ingresso pela última seleção
pública, vivia seus dias sem prazer e sem fé.
Ao pé da
Virgem ajoelhou, fez as preces, prometeu melhorar.
Quando
se ia levantando, bem no canto de onde cabia enxergar, um vermelho intenso lhe
chamou a atenção.
Já
desassombrado girou a cabeça e deu com uma exuberante flor que mais parecia
artificial: exótica, era uma bola de vegetal vermelha aveludada. Muitas
centenas de pétalas minúsculas semi-fechadas em si mesmas, côncavas, mais
longas do que largas, justapostas e simetricamente ajustadas. Quase do tamanho
de uma bola de futebol. Linda e fascinante!
Zumbizão
colheu a flor solitária, discretamente a levou para o vestiário do outro lado e
ficou a admirar o viço da planta, a beleza, a singularidade, a perfeição de
suas folhas, do conjunto harmonioso.
O
contraste da morte com a vida da planta tocou fundo o homem, que ele, com a
rotunda flor na mão, cuidou que não fosse essencialmente infeliz, mas apenas descontente.
Nem tudo
deveria ser necessariamente péssimo; tem de haver algo que o poderia animar,
por exemplo, no ambiente de trabalho. Como poderia ser mais feliz fazendo suas
tarefas?
Decidiu
mudar a conduta, ser mais dedicado aos colegas, mais amigável, mais ativo, conversar
mais, trabalhar mais e se instruir.
Todos
ficaram admirados com a súbita mudança de Zumbizão, tanto que passaram a
chamá-lo de Laurenciano, que, aliás, era o seu nome.
A flor
bela e sensível não pedia a ninguém que se lhe igualassem em riqueza.
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