terça-feira, 5 de julho de 2011

CRÔNICAS DOS COVEIROS DO CEMITÉRIO VERDE - CAPÍTULO VIII - A DANÇA

Durante a exumação dos esqueletos, providências primárias haviam sido postas de lado há muito tempo, porque os sepultadores de tal maneira familiarizados com a tarefa desprezavam a menor possibilidade de contaminação.
Não usavam luvas, nem tinham calçados especiais. Eram escassos os equipamentos de proteção.
Acontecia de aumentar a aparência da segurança quando alguns corpos – dados a altas dosagens de medicamentos ou prolongados tratamentos - não deterioravam no espaço de anos, e inteiriços, negavam aos vermes as suas carnes, teimando em eternizar suas formas.
Contou-me um jardineiro que quando jovem ajudava coveiros durante uma operação dessas. Era um corpo de mulher tão inteiro e conservado após a abertura da cova, que ele pôde ver os pêlos pubianos amarelados.
Explicava assim sua ojeriza por louras, desde a mocidade.
Em certa ocasião houve a necessidade de retirar um corpo de uma gaveta onde jazia já há dezesseis anos, para que em seu lugar outro descansasse.
As informações de sepultamento chagaram tardias.
Não havia mais tempo, era final de dia, apenas um inumador fora destacado para exumar.
Não houve surpresa - nada mais o surpreendia! O corpo estava inteirinho, faltando-lhe apenas cabeça, mãos e pés.
Pensou o solitário: “Eu vou resolver isto à minha maneira porque não dá mais tempo. Estou só, eu e este cadavérico... Devolver-lhe ao repouso não posso. Demandaria muito tempo e trabalho que não posso. Bem! Estou só e tenho que resolver...”
Apanhou um machado e como desmanchasse um tipo de quebra-cabeça, iniciou mentalmente o destrinchar do boneco, visando decepá-lo em suas articulações.
Antes, testou o facão; com um panaço não fez sequer uma fenda respeitável no material. Assobiou uma canção tirante a uma valsa... Outro golpe, a carne plástica permaneceu indestrutível.
A valsa aflorou-lhe a consciência. Via o salão de caras luminárias adornado apropriadamente para as debutantes da elite ruralista. Atrás de si o caminho percorrido, marcado pelas flores esmagadas desde a cerca dos fundos que escalara furtivo, e por onde invadiu a celebração. Havia deixado seus irmãos menores na companhia de sua mãe enfermiça.
Lá dentro estavam alinhados seus colegas mais sortudos, filhos dos fazendeiros, acompanhando as elegantes e ridentes mocinhas em seus vestidos exuberantes. Era outro mundo!
Largou o facão, ergueu o corpo cadavérico e danou a rodopiar pelos logradouros do seu país imaginário vendo uma dama sem cabeça (talvez a tivesse perdido por ele!).
E as mãos, o que apalpariam? E os pés, por onde andariam?
Durante quinze minutos supinou a dama, fê-la rodopiar, bailou freneticamente.
Viveu intensamente o seu enlevo esquizofrênico, acordando para o mundo dos túmulos de alvenaria com a sirene do rabecão que trazia um passageiro inerte, novo morador da gaveta desocupada pela dançarina.
Recobrada a necessidade da tarefa, e como transformado em três, em poucos minutos fragmentou o corpo em dezenas de pedaços a golpes de machado.
Instalou as partes em uma urna de cimento, inundada de água. Dispôs cal hidratada e assentou a peça, escondida e quieta, no canto mais recôndito do pavimento sepulcral.
Deu curso a sua realidade.
Ao final, via-se o dançarino melancólico, ensimesmado, talvez rememorando outros momentos felizes da festa que viveu através da janela. 

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