domingo, 17 de julho de 2011

CRÔNICAS DOS COVEIROS DO CEMITÉRIO VERDE - CAPÍTULO IX - BONS MOÇOS

Definitivamente um grupo de trabalhadores não é uma confraria, ou outra coisa que exija a total entrega de seus agentes.
Embora estar daquele jeito a serviço da morte signifique seguir normas determinadas e regulamentos prescritos, sob o risco de, não o fazendo, maltratar pudores e destratar o sagrado. 
No entanto, não há observância rígida do comportamento individual fora dos muros, nem vigilância repressora dos “desvios de padrão”, descaminhos da vida, ou arroubos das paixões.
Tampouco existe contrição por não ter sido altruísta em dado momento.
Mesmo assim, uma Necrópole tem um quê de ordenamentos e rituais.
Não se trata de se seguir severamente um ordenamento ético ou existencialista, nem de lançar mão de uma perspectiva de equilíbrio psicológico e espiritual.
O Cemitério Verde reservava um longo espaço de tempo diariamente para todos os operários, especialmente aos que ficavam fora do plantão de sepultamento, cabendo-lhes a limpeza do campo santo. 
Como disse antes, a varrição era lida rápida que deixava ócio para as contratações de serviços proibidos, ou tramas, conspirações, estudos ou meditações.
Uma turma chamava a atenção mais pelo agrupamento cotidiano em horários regulares do que pela ociosidade.
Gostava de ler a bíblia e orar a Deus. Era a turma dos evangélicos.
Alguns que conheci, tão logo atingiam seus intentos materiais, por mais simples que fossem suas prosperidades, transformavam-se em seres insociáveis.
Não ataco, não defendo. Não confirmo, não duvido. Vejo e só.
Jesus Cristo junta e a religião espalha!
É possível a hipocrisia nas miríades de associações.
Um bom cristão, no entanto, deve ter humanidade levada a sério! A indumentária não conta. Memorização de excertos doutrinais não vale!
Não só se comover, mas participar, compreender e perdoar.
Oração e cânticos fervorosamente entoados também não me convencem! Tem que amar o próximo, efetivamente amar a Deus sobre todas as coisas, e a conduta o dirá se é real e bom crente!
Meu finado marido era crente, evangélico.
Lembro de uma correspondência que espiei antes da postagem, que meu marido enviou a um amigo. Na época ele, meu esposo, era professor aposentado quando foi responsável por introduzir o companheiro na sucessão do educandário onde lecionava.
O sucessor era jovem, ex-aluno de Santiago, meu velho. Havia crescido e se formado professor, motivo de grande orgulho para o mestre.
Casado de novinho, o neófito enfrentava a mais tremenda confusão espiritual que o levava a questionar a permissividade de Deus quanto à profusão de igrejas, o que transmitia a ele imenso desassossego em conciliar a prática da doutrina e a convivência com seus fiéis.  
Santiago relutou em escrever por acreditar que o moço fosse descobrir a verdade pela Graça, conforme pedisse sinceramente.
Vendo, porém, que o garoto, ao contrário, visivelmente se perturbava mais e mais, decidiu responder a algumas questões que fizera repetidas vezes:

“De um velho professor temente a Deus, para um jovem aluno da vida

Queridíssimo Antonio,

Espero que estejas gozando de muito boa saúde, pois dela dependemos nós dois: você, para seguir eficiente e feliz a carreira que eu, agora me despedindo, suponho ter influenciado: a carreira de educador.

As questões que vens fazendo amiúde são, para mim, de dificílimas respostas, motivo por que receio não responder-te a contento.
Arrisco-me em tentar, mas cuidando que um dia outrem mais capacitado possa ler, escuso-me com antecedência.
Vai assim, contando com a complacência e a ternura com que sempre nos tratamos. Vai assim da forma que pouco posso dentro do que penso:
As coisas de aparência externa da fé (liturgia, gestual, vestuário, comunhão, reza, arte, oferendas, etc.) devem datar muito próximo do momento em que nós - o homem - tivemos o estalo da consciência; se confunde com o início de nossa jornada gregária e, por conseqüência nossa função legislativa.
O tamanho de nossa pequenez, nossa fragilidade ante as forças da natureza - dentre as quais a finidade da existência -, deixaram-nos horrorizados.
Naquela fase, creio eu, ter-se-ia-nos aberto um portal para a religiosidade.
Unimo-nos economicamente em grupos por segurança física, e depois enfeixamos regras de conduta; elaboramos uma ética, uma moralidade, para nossa segurança psíquica e espiritual (termos que uso ora sinônimos, ora distintos, mas nunca antônimos).
Nossa trajetória, de maneira simplista e esquemática, caro Antonio, seria: Animal individual, sem consciência - Animal gregário, brutalConsciência, inteligência, homem, animal gregário comum – homem em comunidade – homem social – sociedade moderna.
Digo de passagem que não percebo na Bíblia nenhum desmentido das ciências. De acordo com o que acredito, o que as Escrituras não dizem não significa que sejam invencionices, mas o que elas dizem [isso sim] é verdade incontestável.
A religiosidade é parte da evolução do homem social até a sociedade moderna. De teocracia à autocracia, e mais recente, à democracia. Do estado religioso para a religião no estado, até a separação entre estado e religião.
Em todos os séculos a mesma consciência de fragilidade faz-nos buscar compreensão de alguma escatologia. A inteligência exige uma conciliação entre o mal estar da pequenez e a capacidade humana.
Surgem os lenitivos da fé, muitas vezes à frente de grupos, como estandartes, que postulam à melhor forma de representar a ‘verdade’.
Depois da introdução, vamos às minhas respostas para tuas angustiantes perguntas, meu amigo:

1)     Homens e mulheres expõem-se ao culto e à oração, pregações e missas para melhorar sua crença espiritual porque a necessidade de crer numa força superior é inerente ao ser humano, e tanto mais confortável será quanto mais houver reforçada a identidade do grupo - pessoas que pensem da mesma maneira;

2)     Não sei se seria possível o uso do pecado para divulgar um ‘novo’ significado bíblico. A Bíblia relata dois momentos do homem em relação ao pecado: a lei mosaica e o ministério de Cristo. Há a passagem do homem brutal, que precisa conhecer o pecado pela aplicação da lei, e o homem espiritual que segue as doutrinas de Deus deixando-se conduzir pela bondade do Espírito Santo de Deus.
Creio, sim, que possa existir o uso do pecado, ou do tema do pecado para dar um novo significado ao próprio pecado, muitas vezes confundindo-o com delito ou conduta socialmente reprovada. Neste sentido o que podia ter sido pecado no passado não o é hoje em dia. Há seitas, por exemplo, que esvaziam o conceito judaico cristão de pecado, preenchendo-o com a idéia de imagem imperfeita de um homem perfeito, Platônico. Aí não se trata de aspecto bíblico, mas de doutrina diferente;

3)     Como disse, tanto maior será o conforto quanto mais pessoas comungarem da mesma fé. A existência de um líder, seja pastor, padre, rabino, pai-de-santo, ou outros, é própria da condução cerimonial de cada grupo. Natural que haja pessoas que se queiram baluartes de sua fé, “ostentando-a” em todos os ritos possíveis... O seu remédio. Estas correm o sério risco da prática da intolerância por não terem compreendido exatamente o porquê e o quê estão fazendo em relação à sua sensação particular de pequenez e fragilidade. A elas, recomendo procurar outro consultório, Antonio;

4)     A fé está para o espírito – ou psique -, como o ar está para a vida. Sinceramente, Antonio, eu não acredito na existência de ateus, mas sim, de crentes de outras crenças que não são as que aparecem; prováveis crenças absolutamente exclusivas.
Certa vez, na introdução de um livro, li um interessante paralelo entre Sócrates e Jesus Cristo. O livro, aliás, contava a história de Jesus e foi escrito para cristãos, ou para quem quisesse saber mais de Cristo. [quando me lembrar do nome do livro, te digo]
É impossível ter espírito deveras saudável sem a busca da compreensão do [seu próprio] processo de fé. Sem isso não se pode desenvolver, e o risco de neuroses aumenta. Exemplos desse descuido foram a Santa Inquisição Católica, no passado, e os rituais de imolação que ainda há nos nossos dias.
Modelos contrários, positivos e negativos, podem ser encontrados em todo lugar e em qualquer religião, às vezes coexistindo sem aparente desarmonia.

Certamente não acabou o tema, senão meus comentários por agora.
De ti - esperança do futuro – espero que descubras o teu processo de fé, mas não se esqueça de tentar ser feliz

Fique em Paz, caro amigo!”
Com tanto ócio, num meio tão eclético, poder-se-ia encontrar mendigos, bêbados ou belos boêmios adormecidos, contadores de “causos”, pombos nos desvãos da chefatura e do banheiro... E os bons moços.
Falarei apenas de três encantadores e bons evangélicos, uma vez que os demais estavam mais para fariseus!
Pântanos de falsidade e hipocrisia há em todas as complexas relações humanas. Engana-se que seja apanágio da religiosidade.
A dissimulação está enraizada em todos os vários cantos sacrossantos, minando a confiança e a lealdade.
Os três companheiros tinham características comuns: eram negros, frequentavam a mesma igreja, eram sepultadores, tinham muitos filhos, fidelidade com a fé e com os homens.
Seredião estava com aproximadamente trinta e dois anos enquanto Arilson e Carlito já viravam os sessenta - quando os cabelos viram nuvens e o olhar angélico; surge o respeito que a sapiência traz, mas a velhice nem sempre.
Perdoe-me caro leitor, preciso de um minuto... Meus olhos choram agora à recordação de Arilson.
Ele teve passamento recente, pouco antes da conflagração que me comprometi a narrar... Ai! Meu Deus!
Bem... Nos horários de relaxamento, quando não lutavam por dinheiro, principalmente após o almoço, se reuniam para louvar ao Senhor. Aliás, com justiça, louvavam ao Senhor primeiro, para somente depois lutarem por dinheiro.
Entoavam hinos e oravam.
Para cada um cabia uma interpretação dos acontecimentos dos dias à luz das Sagradas Escrituras.
Eram cristãos, se acreditavam cristãos e tentavam sempre agir como tal. Sem ostentar sua filantropia, o grupo não negligenciava o dinheiro - esse pomo de discórdia. Eis o motivo porque alguns os entendiam farsantes.
Ora! Eram cristãos, mas não deixavam de ser homens. Então não se deixavam iludir ou permitiam que abusassem de sua boa fé.
Tinham sempre uma boa palavra de conforto para quem precisasse.
Um dia apareceu no cemitério um rapazola malposto, com trajes rotos e hálito insofrível; cabelos desgrenhados, olhar vazio, sem algibeira, história, emoção...
Porfiava o pobre e infeliz com a sua própria sombra acerca do efeito de ambular, e altercava com um deus qualquer sobre sua desdita.
Faltava-lhe coragem para o suicídio, e por isso insistia com a Providência que procedesse ao fim; exigia instantaneidade.
Vendo aquela triste figura, puseram a confabular os três evangélicos de nossa história:
- Que podemos fazer por aquele moço? – perguntou Arilson coçando o queixo num dos seus cacoetes de caboclo vivido.
- Vamos conversar com ele, tentar levar um pouco de entendimento da palavra de Deus. Depois havemos de dar comida e, se ele quiser, pode tomar banho e usar um dos meus uniformes. Aí depois... Vamos ver... – retorquiu Carlito, ao que o grupo automaticamente operou.
- Bom dia rapaz, como vai? Você tá bom? Precisa de ajuda? – Tomou a iniciativa o Seredião, homem de atitude.
O rapaz, então compungido, faminto e ressequido, de olhos agora ternos, sorriu uma linha tênue nos lábios.   
Com efeito, formava um simpático grupo de senhores: dois anciãos e um aprendiz: asseados, educados, pessoas de bem... – “Você está com fome? Que comer?” – continuou Seredião ao flagelado.
- Quero moço – respondeu, prorrompendo em lágrimas.
Acolheram o pobre, que humildemente deu-se ao trato de “coitado!” pelos transeuntes que passavam ao largo da cena.
Alimentaram-no, permitiram-lhe o banho com seus apetrechos de limpeza e higiene; serviram-no com o uniforme do Carlito para depois perscrutarem os fatores de sua má sorte.
Como o rapaz estivesse discursando sem nexo, Seredião propôs, após inquirir se tinha lugar para morar, dar guarida ao miserável:
- Olhe! Minha casa não é tão grande, mas tem um espaço nos fundos onde você poderia ficar sem no causar transtornos... Comodamente, até que as coisas melhorem pra você. Você aceita?
A resposta foi positiva.
O menino acolhido em casa de Seredião acertou na loteria. O seu redentor orientou-o, tirou seus documentos de cidadania, pagou-lhe corte nos cabelos, arranjou-lhe emprego modesto, enfim, tentou dar-lhe sentido à vida.
Numa cidade tão alucinante como a que vivemos, estar vivo não é mais condição de quem vive, é arte, uma árdua labuta. Os riscos que correram Seredião, os filhos e a esposa não foram pequenos. Ele sabia disso, mas a fé e os ditames de sua consciência o ordenaram que assim o fizesse.
No entanto, o jovem peregrino baldou toda a beleza da atitude.
Como não estivesse satisfeito, desapareceu sorrateiro, sequer levou a bíblia e objetos que ganhara ou os documentos oficiais.
A nobreza do gesto de Seredião, a magnanimidade de sua afeição, a prática cristã do grupo e o interesse humanista foram descartados num só golpe: o do desprezo.
Apesar dos pesares, sentiram-se entristecidos pela frustração do projeto e se questionavam incessantemente se a motivação daquela deserção não fora a insistência em fazer com que o jovem frequentasse sua igreja.
Muitos meses depois o garoto foi visto dentro do cemitério, alcoolizado e dando marradas no frontão de um túmulo.
A última notícia é que a polícia o teria preso por tentativa de assalto à mão armada de faca. Coitado!

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GRACIAS ANDINAS