sábado, 10 de setembro de 2011

CRÔNICAS DOS COVEIROS DO CEMITÉRIO VERDE - XII – MINERADORES

Nada do que estou contando deve ser motivo de colossal estranheza.
Hás de recordar, vagamente que seja de reportagens impressas de assaltantes de túmulos. Pessoas inescrupulosas que de tempos em tempos se dedicavam à devastação de sepulturas para assaltá-las.
Aliás, trata-se de uma profissão bastante antiga, talvez tão antiga quanto a prostituição. Bom, talvez não tão antiga! Talvez requeresse muitas gerações póstumas a Noé para que o gênio e a inventividade humana, no momento de miséria espiritual e material mais retumbante desse azo à tão indigna atividade.
Disseram que era ação pré-estabelecida por quadrilhas que, por falta de oportunidade de maiores vilezas, arrombavam jazigos, saqueavam o campo santo à procura de dentes de ouro e outros objetos de valor – disseram que principalmente dentes de ouro.
Entretanto, os violadores detidos negavam que houvesse ação tão premeditada e se apresentam como simples meliantes, vagabundos sem eira nem beira.
Choca perceber que, independente de que esses assaltos ocorressem com frequência, e que os poucos detidos fossem os tais biltres, os primeiros e contundentes suspeitos eram sempre os sepultadores.
Afinal supunham serem eles os exímios conhecedores do cemitério, para quem apalpar corpos putrefatos, fétidos, não oferecia incômodo nenhum; além disso, são “figuras desprezíveis” mesmo! Não é?
É assim: longos períodos de rotina e calmaria. De repente numerosas violações, sepultadores suspeitos. Não há outros, são sempre os primeiros interrogados, vigiados, a quem se prepara as esparrelas e se faz sistemáticas pressões psicológicas.
No decorrer de um período desses, em que as violações aconteceram noites seguidas e atingiram centenas, fazendo com que as necrópoles parecessem Serras Peladas - depois de tanto furor e especulações -, destacaram o delegado das proximidades para as investigações profissionais.
A diligência sempre se instaurava com ar de assombro, como coisa inusitada; certo quê de descrença; certa dose de indignação... E muita vontade de reprimir, de extravasar a truculência adormecida no coração de mitos homens.
Como se fosse novo na questão, na mente do doutor em assuntos criminais a suspeição recaiu sobre quem? Os coveiros, óbvio!
Todos os contatos arrumados foi-lhe permitido recolher o depoimento daqueles funcionários, cada um de per si.
Na sala/refeitório os homens estavam num rebuliço só! Isto sempre os inquietava.
O primeiro a depor foi o simpático Burquinha.
Empertigou-se na cadeira de depoente (ou seria de réu?): “Doutor, que lamentável isso, né? Será possível? Mais de doze anos eu trabalho de coveiro e isso nunca acaba, é sempre assim...” – atalhado pelo delegado: “É sempre assim como, senhor... Burrrr... Burquinha? Hã! Como é sempre assim, heim?”
Burquinha sentiu o lugar que lhe reservava a vox populi expressa pelo doutor, naquela sociedade preconceituosa : Um lixo! Caso o lixo não se ofendesse, claro!
Indagou-o com frieza sobre seus colegas, sua rotina, seu salário, sua família, a saúde de seus filhos, seu orçamento doméstico, sua possível reação a uma crise financeira. De quando em vez, trocava a carranca por um véu de sorriso, simulando simpatia, declinando do assunto para imediatamente retornar à circunspecção do tema: “Desconfia de alguém aqui dentro Seu Burquinha? Algum colega menos ético ou menos responsável, com problemas financeiros ou debilidade mental?“
Notava-se claramente o desagrado da pergunta nas faces avermelhadas e o semblante carregado de ódio e tristeza de Burquinha. Este nada respondeu. Apenas perguntou como recobrando o moral: “É só doutor?”
Burquinha concluíra sua parte, e a cadeira, ocupada por outros sepultadores, mal esfriou naquele dia.
Isto se repetiu durante todo o dia. O delegado sequer pausou para almoçar. Bebeu muitas xícaras de café até terminarem os depoimentos.
 “É uma maldição! Além de tudo, temos que passar por mais essa humilhação!” – desabafava Burquinha com seu copo transbordando de um elixir de conhaque com carqueja.
Três dias depois do festival de depoimentos - a Inquisição conforme compararam alguns -, foi preso na madrugada subsequente um violador de cadáveres que assumiu toda a responsabilidade, juntamente com outros dois inescrupulosos co-autores que conseguiram fugir na escuridão.
Os fugidios não tiveram moleza! Foram capturados no Cemitério Rosa, exatamente onde o delator agendou o encontro para mais uma sombria mineração.
Houve alívio. Na lanchonete do Tonho, após o expediente do dia da captura, exultavam muitos dos, por agora, ex-suspeitos. Mais uma vez não puderam provar nada contra eles. Estavam inocentados outra vez!
Mas a indignação continuava pairando, esconsa no peito.
Nas semanas que seguiram, uma emissora local de televisão fazia reportagem sobre as esculturas da Necrópole, quando uma algazarra atrapalhou o encaminhamento da equipe. Era uma senhora escandalizada por ter visto uma tentativa de assalto há poucos metros de si.
Parte de nossa imprensa tem algo de sensacionalista e sangrento – bem vi num texto de um cronista - não me engana a velha memória - fazendo tudo parecer que é melhor se for ruim, porque, supõe, vende-se mais daquilo que o povo deseja.
Como se o povo realmente fosse sórdido, doentio e viciado nas coisas rasteiras quem chamam de grade televisa.
Como se parecesse que do jornalismo faz parte não perder escândalos em detrimento de uma matéria cultural, se necessário.
O banzé armado, a velhinha falando pelos cotovelos, a câmara registrando tudo, irrompe Burquinha, orador ativado contra a leviana ligação que fizera a velha entre o punguista medíocre e os coveiros:
- Vejam vocês meus senhores. Isso vai para televisão? Ah, vai!? Tá bom! Todos que trabalham neste lugar são pessoas honestas; o trabalho que fazemos é muito difícil e ninguém, ou quase ninguém tem coragem pra fazer. Nós temos! Alguém tem que ter... e nós temos! A importância verdadeira de um trabalho é o fato de ele produzir efeito na sociedade. Imaginem que a gente não existisse... Outros homens e mulheres que precisam de trabalho estariam aqui para prestar este serviço à sociedade; serviço de muita importância...  E poderia ser um vizinho, um irmão, o pai ou mãe de qualquer um que ataca a gente... E se ninguém tivesse coragem para mexer em cadáver e osso e em carne podre? Porque é isso que a gente vira depois que morre: lixo, lixo muito sujo e mal cheiroso. Como seria? O que vocês não sabem é que a gente ganha uma miséria de salário, trabalha todos os dias, e sempre que somos convocados. Não temos nenhum benefício a mais por isso, e até as horas extras são mal pagas. Corremos o risco de pegar uma doença porque nem sempre temos material adequado, e ninguém reconhece (...).
Parou por alguns segundos para tomar fôlego e rebentou em raiva e gesticulação, mas nada obsceno: “(...) Ninguém reconhece droga nenhuma que a gente faz... Pergunta praquele velha...” – indigitando-a ameaçadoramente - “se ela tem coragem de pegar o parente dela que tá enterrado lá embaixo, ela tem? Então, porque o que não presta é sempre a gente que tem haver? É isso que eu queria falar... Obrigado! Tchau, obrigado!”
E saiu triunfante, abraçado por todos os colegas e alguns transeuntes rebeldes que se haviam postado ao redor da equipe de tevê em favor dos trabalhadores, incitando e gritando palavras de ordens: “Abaixo a repressão. Abaixo a injustiça social...”
O discurso do Burquinha foi visto nos telejornais vespertinos e noturnos com grande audiência. Ele foi porta-voz das agruras daqueles homens que só desejavam mais respeito. 

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GRACIAS ANDINAS