quinta-feira, 5 de abril de 2012

CRÔNICAS DOS COVEIROS DO CEMITÉRIO VERDE - CAPÍTULO XX - IRREVERÊNCIAS

XX - IRREVERÊNCIAS
Uma mudança vinha se processando nos funcionários e a breve passagem de Divina pela administração catalisou a transformação.
Não obstante enxotada pelo quadro, deixou marcas indeléveis no espírito daquela gente.
Coisas como democracia, bandeiras de luta, autoconfiança, determinação e organização, haviam excitado os ânimos dos pobres homens, seus espíritos.
Despertou nos sepultadores certo gosto pela discussão de seus problemas – gosto veementemente negado quando se tratou de depô-la do cargo, já uma artimanha política.
Criou a idéia de apreciar a liderança. No quesito, a atenção convergiu para o encarregado empossado havia poucos meses, que exercia uma grande ascendência sobre todos.
Não sem motivos, pois era esperto, ágil, inteligente e conhecedor de todos os procedimentos legais e práticos para a execução dos trabalhos, com idade inferior a vinte e cinco anos.
Seu pragmatismo, ao passo que contagiante, era inimitável. Devia suas habilidades à misericórdia de Deus que lhe permitiu se formar um honesto companheiro em meio à vulnerabilidade social que herdara da família, esta nascida e crescida sem nenhum interesse pela educação e generosidade. Sua infância vivida no seio da maldade e da droga, não se extraviou de trilhar a escola formal tanto quanto pôde incólume e saudável.
Contava ainda a seu favor o fato de ter uma amizade com os subalternos; parentes antigos nos outros cemitérios coloridos – filiais da mesma empresa; morar próximo da maioria – dava caronas a muitos -, e de ter a autoridade natural, sem imposições.
Um jovem pai de família responsável, não menos um profissional competente e zeloso e um chefe ardiloso.
Os sepultadores começaram a valorizar efetivamente sua função. O discurso eletrônico de Burquinha muito os incentivou. Não se mostravam mais homens menores. Estavam mais asseados, consumiam menos álcool e ostentavam maior disposição e respeito próprio.
Notadamente, antes, quando conversavam com os visitantes, o faziam com temor e gaguejo; torciam os braços e pernas, olhavam para o chão ou para céu, evitando a superioridade dos olhos interlocutores.
Agora em vez disso, erguiam os seus olhos e se mantinham eretos, apontando o queixo, imprimindo firmeza na voz e na fala.
A primeira vez que se fez necessária a rigidez da auto-estima, foi contra um mal acostumado deputado.
Havia a proibição de entrada de veículos automotores nos sete cemitérios afiliados. Porém nas Necrópoles Verde, Azul e Amarela, essa determinação nunca foi seguida, graças aos sólidos privilégios dos mais abastados, a malandragem dos homens públicos e a conivência do alto comando.
Oficialmente, a exceção cabia apenas para deficientes, idosos ou pessoas comprovadamente carentes de saúde.
O novo caráter dos coveiros, posto à prova, não decepcionou.
Quando observaram a entrada do luxuoso automóvel de placa distinta, permitida pelo coveiro que fazia às vezes de porteiro, acorreram-no acreditando que ele tivesse sofrido pressão do eleito no veículo da municipalidade.
Confirmado que Nailson sofreu mesmo a suposta pressão, incontinenti, deram as mãos em inusitada corrente humana, interrompendo a passagem da excelência.
Tamanho alvoroço atraiu o encarregado que conferiu autoridade aos subalternos, endossando a atitude.
O político fez o motorista manobrar e sair sob protestos e promessa de revide, para depois entrar a pé pelo portão de pedestres. Os desdobramentos resultaram em nada. Não convinha à iminente campanha eleitoral.
A relação deste fato, outras vezes repetido, com o impressionante enaltecimento da auto-estima só fica clara quando nos lembramos das tantas ocasiões em que os sepultadores, mesmo com a razão, ouviram desaforos sem esboçar qualquer reação. Calavam porque se sentiam depreciados. Apenas coveiros.
Outras oportunidades surgiriam. Exemplo: um dia um enterro estava marcado para duas horas da tarde e os familiares do nobre falecido exigiam que o enterrassem ao meio dia – “Estamos no horário de almoço. A senhora faça o favor de voltar, acalmar seus parentes, porque somente às duas horas da tarde o falecido será enterrado. Obrigado!” – e viraram as costas, deixando a matrona coberta de jóias e desprazer, falando sozinha
Outro: quando um delegado mandava que enterrassem o bisavô quatro horas depois do horário marcado – “Lamento, se o senhor quiser enterrar seu parente mais tarde, deve voltar e pagar o velório por mais quatro horas. Obrigado, heim!” – responderam ao mandatário policial, que avançou nos homens em visível nervosismo, esbravejando:
- Vocês sabem com que estão falando? Eu sou delegado e posso pô-los na cadeia por desacato a autoridade...
Tranquilamente respondeu o encarregado:
- O senhor sabe com que está falando? Somos coveiros, e se o senhor colocar a gente na cana, um dia a gente sai. Mas se a gente colocar o senhor numa cova, o senhor só sai se gente exumar.

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