domingo, 8 de abril de 2012

CRÔNICAS DOS COVEIROS DO CEMITÉRIO VERDE - CAPÍTULO XX I - O ADMINISTRATIVO

XXI - O ADMINISTRATIVO
No passado o Cemitério Verde também foi uma empresa estatal, mas como o governo não conseguiu administrar bem suas atividades – por um rosário de motivos que prefiro calar -, o Verde e os outros cemitérios coloridos foram concedidos a empresários versados nas coisas da morte - portentos do capital com empresas em N negócios.
O quadro de funcionários tinha oitenta por cento do efetivo arrastado da época do funcionalismo. Daí alguns vícios e hábitos, resquícios de hábitos, cargos e “jeitinhos”.
Iumador passou a ser sepultador - embora ainda figure em alguns crachás desatualizados. Construtores e Jardineiros passaram a Operários I e II, mas não se apresentavam assim.
Administrador ficou administrador mesmo pela necessidade da imposição semântica do cargo. Oficial de administração mudou para escriturário ou datilógrafo, ou digitador, conforme a funcionalidade técnica do empregado. Empossar ficou admitir e destituir, demitir.
Os proventos viraram salários mais baixos: coisa de adequação de mercado.
Havia um administrativo, escriturário interessante no Cemitério Verde pela sua ativa personalidade. Era baixinho, gordo, cioso da longa e negra cabeleira encaracolada, tinha as pernas em estreito “O” mais altas do que o tronco, o que lhe conferia certa elegância.
A aspereza com que todos eram tratados dentro e fora da Necrópole intensificava a necessidade de formarem um grupo senão legítimo, ao menos coeso.
Lupércio, o administrativo, tinha trajetória acadêmica curiosa: fez um ano de cinema, dois de administração e outro de biblioteconomia; não concluiu o curso de inglês intensivo nem o de violão que tinha começado há sete anos.
Aos quarenta anos vivia essa tamanha indecisão vocacional, que mexia no seu humor. Tinha momentos de doçura e também de irritação, de incomunicabilidade e antipatia.
De regra, no entanto, era ferrenho defensor dos trabalhadores.
Certa feita tomou cerveja demais antes do almoço. A tontura o fez chafurdar em rancores contra o descaso com as funções do cemitério. Naquele dia foi infeliz!
Duas dondocas entraram na administração a reclamar que dois empregados (coveiros), brincando com uma lata de cal, mancharam suas calças.
Chamavam os sepultadores de burros, idiotas, filhos da mãe (quiseram dizer “da puta”!) e mais uns impropérios!
Lupércio não se conteve ante os xingamentos:
- Por que vocês não vão procurar o que fazer heim!? Suas cretinas! Os homens não são burros, idiotas ou isso aí que vocês disseram. Queria ver vocês trabalhando, produzindo alguma coisa, ao invés de ficarem nesta vidinha inútil de filhinha de papai... Quer saber? Vão para o diabo que as carreguem, suas ninfetinhas de zona!
Foi infeliz mesmo naquele dia! Umas das meninas era filha de ex-secretário de pasta do governo, justamente de assuntos regulatórios da morte, cuja influência não havia resfriado.
Lupércio só não foi demitido porque atingira período de estabilidade – uma das poucas condições tratadas na concessão dos cemitérios ao empresariado.
Deu o que fazer, no entanto, para o acordo não dissolver.
Foi humilhado ao ter que se retratar com as meninas publicamente por duas vezes: no gabinete do atual secretário, de frente às meninas perfiladas aos diretores da empresa - elas aproveitaram para incluí-lo na lista dos inúmeros qualificativos desonrosos que até então se restringiam apenas aos coveiros; e doutra vez no cemitério em frente à capela, quando se realizava velório com grandíssima afluência.
E para que não esquecesse, assinou advertência em cujo teor se comprovava suas ofensa e retratação. Recebeu, adicionalmente, gancho de uma semana com corte nos vencimentos.
Por fim, à vista de que a descrição do seu cargo permitia que o obrigassem à faxina em qualquer lugar da empresa, no retorno do gancho foi apenado com a transferência para o Cemitério Abóbora - literalmente do outro lado da cidade -, com a função única de varrição e limpeza das salas de velórios, capela e escritório.

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