sábado, 19 de novembro de 2011

CRÔNICAS DOS COVEIROS DO CEMITÉRIO VERDE - CAPÍTULO XVI - A DECISÃO DE PORCA

Dia nublado de um frio incômodo de inverno, com o sol arriscando uma espiadela pelos interstícios do nevoeiro.
O Porca chegava esbaforido, atrasado e resoluto: “Quero ir embora daqui. Quero minha transferência para o Cemitério Azul!.” Falou decidido ao administrador - um sujeito demagogo que estava no ramo há décadas.
Iniciara sua gestão do cemitério há duas semanas em substituição à Divina.
“Quero ir embora agora. Já tive no Cemitério Azul e o administrador de lá disse que por ele tá tudo bem e que já tem um funcionário pra fazer a permuta comigo.” Considerou peremptoriamente o Porca.
O politiqueiro, conhecendo os relatos do encarregado que atestavam a importância funcional do Porca (sabia inclusive da sua intenção de ir embora em função do amigo Miguelito, que o deixara para encontrar melhor clima de trabalho), por alguns segundos em silêncio e de memória, avaliou a enquete que fizera entre os colegas do solicitante:
- Mas Lúcio Walter, você me pegou de surpresa – era afetada a gesticulação do administrador. “Eu não estou preparado para abrir mão de nenhum funcionário, e pelo que soube de você, menos ainda. Pondere um pouco. Você tem férias vencidas? Quer alguns dias para descansar... Ou pensar?”
“Quem sabe não são problemas que você tenha pendentes – continuou -que deva tirar alguns dias para resolver, não é? Depois você volta com a cabeça mais fresca, heim!, que tal?!”
- Não. Eu não quero é ficar mais aqui. Tô muito decepcionado com alguns colegas; tenho férias vencidas sim e os antigos administradores não me deixaram sair. Meu pai está doente lá em Nova Jerimum; meus filhos ficaram doentes nesses tempos agora, e... Eu não quero mais ficar. Se o senhor não me transferir... Eu não sei não...
O chefe tentou demovê-lo em vão. Pediu uma semana para decidir, mas o sepultador já estava decidido e o “não sei não” era ameaçador e irredutível.
Sua idéia: atrasar diariamente, trabalhar com morosidade e sustentar-se com cachaça até conseguir se mudar.
Não tendo ouvido a aprovação imediata, esperou dias. Não foi procurado para o retorno da solicitação. Porca não teve jeito: deu início ao “eu não sei não”.
O encarregado, que o conhecia de longa data, sabia da persistência dele, sabia que era irremediavelmente opinioso e iria fazer o quê fosse necessário para se transferir.
Uma semana depois, a resposta positiva tornou a cor à pele e repôs o sorriso na cara do coveiro. Era todo festa! Despediu-se dos colegas, dos desafetos, do Tonho do bar, dos logradouros, não se esquecendo de acenar para os túmulos e para um ninho de pardais que transladara para um galho mais alto, para salvá-lo dos gatos e, principalmente, das pedras da molecada.
Em sua saída, lembrava um retirante com sua trouxa nas costas, o violão a tiracolo e uma sutil melancolia, não fosse a certeza de encontrar conforto espiritual e alento ao lado de seu inseparável amigo.
No limítrofe do Cemitério Verde, Porca estacou, virou e espichou o pescoço, lá estava a cova 15655-A da quadra 35. Retrocedeu pelo atalho e aos pés da sepultura murmurou: “A senhora me desculpe e pede desculpa também para o seu marido, mas eu preciso ir. Quando dé eu venho visitar a senhora”.
Despediu-se da falecida esposa daquele seu colega velho dos finais de semana, esquecendo-se que ele jazia ao lado de sua amada mulher.
Só lembrou a morte daquele homem duas horas na frente, quando abraçava efusivamente o Miguelito.

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