sexta-feira, 3 de junho de 2011

TRAMAS in JUSTIÇAS

      O meirinho trazia sob o olhar aquilino, algemado, o velho bandido – na juventude, homem de maus bofes que estuprara, roubara, assassinara; enfim, fez coisas e cometeu atrocidades que fariam o Cabeleira Zé Gomes parecer uma criança malcriada.
      Postado o maléfico ancião na banqueta dos réus, quem via sua silhueta de imediato, através dos longos pêlos brancos difusos no rosto, e das sobrancelhas que empanavam os olhos satânicos; quem fitava a figura perdida nos trapos penitenciários, atrás de rugas, cicatrizes e escoriações em sangue, mal se continha do ímpeto de libertar incontinenti o vovozinho, apesar dos crimes que perpetrou.
     Cinco anos decorrera desde sua prisão no sertão mineiro, obtida tão somente pelos ardis da mente engenhosa do inspetor de polícia da Guanabara, posteriormente alçado a chefe de polícia de estado, homem da ciência investigativa – aliás, ao que devia sua tão prestigiosa posição.
       Contava o velho malfeitor cinquenta e alguns anos apenas, mas à vista de tão pouca energia residual no corpo arruinado pela promiscuidade, resolvera aposentar-se da barbárie, mentindo ser outro lixo humano das ruas daquela promissora cidade provinciana.
      Iam os dias de esmola garantindo sua farsa, para bem esconder a verdade do tesouro em jóias e dinheiros que amealhou ao longo da profissão de perversidade.
     As pessoas sentiam um dó sem semelhança! Conquanto os olhos do velho chamejassem a maldade, atribuíam ingenuamente a uma possível vida de sevícias que o coitado teria vivido.
     Passeava, portanto, tranquilamente na sua cidade durante o dia. À noite cabia-lhe vigiar as arcas dos tesouros: uma, que trancafiara no mais fundo da garganta duma extinta mina de carvão, três léguas da cidade; e outra, de paradeiro até hoje ignorado.
       Seus planos iam mais adiante: a poeira assentava; pegava o primeiro vapor e... Zás! Fugia do país.
     O recém chegado inspetor tinha o propósito de afixar os éditos da busca do malvado nas cepas de iluminação pública – o que, aliás, vinha fazendo desde que chegou da Europa, começando pelo sul. Tinha pouca esperança de encontrá-lo nas costas, e por isso iniciara sua implacável caçada nos interiores.
       Mal o homem da justiça martelou o primeiro cartaz, a poucos metros, um famigerado (que não entendia o perigo, vez que o retrato conservava alguém viril e moço demais, impedindo qualquer sombra verossímil da identificação), rosnava enquanto se aproximava, com uma canequinha suja e pestilenta:
       - Esmola para um disinfeliz, que mora nas ruas desse mundão de Deus, bom homem?
       - Não.
       Insistente, para melhor configurar o novo ofício: “Pode ser moeda, qualquer moedinha, uma esmola, pelo amor de Deus!”.
        - Não. – Negativa fleumática, displicente.
     O homem de polícia tinha administrado suas emoções ao ponto de não se condoer com nada, nem ninguém. Ademais, a estratégia perfeita – aprendera com os ares internacionais – era desesperar as pessoas. A priori (e sem exceção), todos são criminosos potenciais. Mais: todos são culpados até que provem a inocência em juízo, ou até que apreendam o criminoso confesso.
        - Nem uma moedinha, doutor? Nem um trocadinho?
        Os olhos do meliante transpiraram a revolta e vingança dos desvalidos - objeto dileto de humilhação dos agentes da lei e da política. Claro era também, que a comichão de avançar ao pescoço do homem lhe apetecia pelo prazer de matar.
        Era um psicopata. Quando assim diagnosticaram sob palavra tão empoladamente repetida em diversos comícios, ele adorou tanto, que adotou essa marca nos bilhetes que passou a deixar nos últimos crimes.
       Por não saber escrever, desenhava toscamente uma cabeça quadripartida: no primeiro quadrado uma cruz; no segundo, três moedas; no seguinte, um monte de cobrinhas emaranhadas de bocas abertas. No último quadrinho, um cavalinho de brinquedo. Julgava assim representar a terminologia que ouvira.
         Deixava ostensivo o bilhete, sobre o cadáver mais próximo da porta dos fundos.
       - Imundo! Não vê que devo encalço a esse foragido – divisou, virando-se, o perfil do pedinte: macilento, claudicante, pele abrasada; e os olhos...? Não eram olhos naturais de uma pessoa digna de humanidade, não.
      Discretamente bateu levemente a bengala duas vezes na aba de seu chapéu coco. Sutil, um clarão espocou quase imperceptível ao longe.
       - Agora, deixe-me, pois devo rodar cada metro desta cidade. Não me importune, ou o prenderei por atrapalhar as diligências do caso. Mas não deixe a cidade. Ouviu?
         E assim rechaçou o malcheiroso e fingido bandido.
        Na alva do dia seguinte, o comboio de carros da comarca, flanqueados pelos da federação, cortejava pela cidade enquanto no megafone fanhoso da praça da matriz a voz trovejava: “Cidadãos! Graças ao trabalho do estado maior de polícia e auxílio desta força local, foi aprisionado na alvorada, o bandido mais perigoso do século: o Degolador.”
       No tribunal, cinco anos depois, o meirinho com toda reverência, indicou o assento de depoente ao ilustre policial, a quem a impressa e o público esperavam o pronunciamento sobre o impressionante feito:
     “Meritíssimo. Jurados. Senhores. A captura do réu foi resultado de uma longa e meticulosamente elaborada investigação, amparada pela tecnologia e estudos desenvolvidos para o benefício da lei e da ordem. A legitimidade e adequação dos procedimentos e aparelhos utilizados, assim como as parametrizações ergométricas, biológicas, psicológicas, etc., bases para este trabalho, são patentes aos senhores no dossiê em poder desta corte.”
          - Protesto! Meritíssimo, as provas...
          - Negado. – peremptório, o juiz: “Continue doutor inspetor chefe geral de polícia, sim?”
        “Como dizia: homens equipados com as mais potentes lentes de aumento foram espalhados por todo perímetro de sorte a cobrir a visualização integral da cidade. Tais homens foram intensamente treinados nas artes gráficas, desenho, pintura e fotografia – esta, aliás, cujas câmaras são providas de objetivas importadas do leste, para garantir a aproximação de até mil vezes o tamanho do foco...”
           - Protesto, protesto, protesto! – desesperava-se o promotor.
           “É negado protestar. Prenda ele, juiz...” - Gritava a multidão.
           - Negado. Prossiga. – conduziu o togado.
           Não deu tempo. O promotor arrancou o dossiê das mãos dos jurados, espalhou fotos e relatos no ar e inviabilizou o silêncio.
          “Vejam senhores e senhoras. Olhem estes rabiscos. Notem a falta de coerência entre os pareceres; a falta de nitidez das imagens; a incompreensão caligráfica do amontoado de anacolutos sem sentido.” Gradualmente o burburinho foi dando lugar ao espanto.
           Antes que a guarda imobilizasse o defensor, o réu saltou sobre o chefe geral de polícia, enlaçando-o entre as pernas:
           - Vamos canalha! Diga a todos como me pegou... Vamos... Diga se não te divido ao meio, seu patife!
Silêncio expectante. O inspetor:
           - Foi sorte...
           - Mais alto, seu cão sarnento!
           - Foi sorte... – gritou o doutor policial.
           Assim preso nas patolas do bandido, ele confessou:
           “Eu não agüentava mais a pressão dos superiores... do público, da imprensa... da minha mãe...”
          - Vamos, continue seu filho de uma cadela! – Mesmo naquelas circunstâncias inusitadas, as mulheres coraram.
         “Localizamos o tesouro nas minas de carvão. Sem novidade! Outros tantos eu havia encontrado em outras cidades. Então, sem esperança de por fim a este inferno, muito desesperado, abandonei os métodos acadêmicos e decidi usar outros meios:
Cometi um crime à altura do procurado – com a precisão de seu modus operandi -, e assim, pude sediar-me na cidade. Depois, prendi cada miserável dali. Obriguei-os a confessar a posse do tesouro e o recente crime... Alguns morreram nos interrogatórios. Muitos, notando o sumiço de colegas, fugiram. A cidade ficou sem vagabundo ou andarilho. Aí, lembrei-me deste – fixou nos olhos do capturador... Lembrei-me do encontro, sua negação em ser preso (a primeira coisa que um homem gostaria, no estado que estavam estes desgraçados, é de morrer ou ser preso – ao menos teria alguma liberdade, ou qualquer refeição.
Interrogamo-lo por três noites. Ele não confessou.”
           - Fale maldito!
          “Ele resistiu aos ferimentos, e, como não morreu e não tínhamos outro -, trouxemos à barra da justiça, depois de forjar sua assinatura maldita numa falsa declaração de confissão.”
           Depois disso, novas audiências aconteceram; o julgamento terminou.
           Degolador foi condenado à morte.
           O arguto inspetor pavoneia-se nos encontros sociais e está no terceiro mandato de intendente geral da polícia secreta.
           O mendigo continua preso.

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