sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

A Paz do Perdão

Era véspera das bodas de pérola.
Fazia duas semanas que não se falavam, pois a briga foi retumbante e as ofensas de lado a lado, imperdoáveis.  
Simulando mal uma despretensão, o esposo intenta uma conversa na décima madrugada de insônia, febre e tosse.
 – Quem diria mulher, heim?! Casamos; eu ainda meninote, sem experiências de vida, sem eira nem beira! Agora: nossas casas, nossos carros, as mobílias... Eis aí nosso patrimônio! Que beleza! Nossos filhos lindos!
- Môrrrr, aahhh... – boceja a sonolenta consorte que, a despeito das mágoas recentes, oscila os movimentos entre o desvelo da vigília e os sonhos invadidos pela mesma preocupação de cuidar do marido-, me deixa dormir, vá! Me deiiiiiii... aahhh... – bota a mão na testa quente e úmida dele, mas não resiste e dorme. Está aferrada no sono.
- Mas, querida, você não vê o quanto crescemos, o quanto prosperamos...
E a porta abriu, rangendo e lenta, inundando todo o quarto de luz, ofuscando os bibelôs do aparador, destacando os retratos do início da vida do casal (a igreja, o bolo, os convivas; as lutas, as vitórias, as comemorações, e os rebentos... O hoje).
Assomou na claridade a silhueta torta de uma velha curva. Não se assustou; ao contrário, estendeu-lhe a mão oferecendo, cavalheiro, o canto mais macio da cama para que sentasse.
- Como vai, meu amado?
Seus olhos abriram até quase despejarem-se das órbitas, e o silêncio a tudo dominou. Era a sua mulher! A beleza juvenil da pele acetinada deu lugar ao tegumento rugoso; aqueles olhinhos atentos a todos os desenlaces dos dramas e desafios que enfrentaram juntos, durante os anos, eram os mesmos - apenas, e muito, envoltos em pregas, sulcos profundos que iam até a fronte; a vivacidade dos seus gestos diminuiu e a voz, gutural, por causa da traqueostomia.
Mas a doçura do perfume, os trejeitos, sua intenção, sua existência, em tudo era a mesma.
Deu-lhe um beijo casto na boca, acariciou sua face, rearranjou as madeixas de fios lisos – escassos por causa das sessões de quimioterapia -, que pendiam sobre o rosto sempre que ela meneava a cabeça no sinal peculiar de aprovação.
- Tome este chá e descanse meu amado! Repouse. Amanhã você estará melhor!
Refestelando-se a viu retirar-se devagar, e desaparecer na luz. Dormiu sem sobressaltos naquela noite.
Pela manhã olhou a esposa a seu lado: linda e indispensável! Soprou seu ouvido, ela abriu os olhos; ele ponderou:
- Quando as nossas energias se esgotarem no corpo, lembre-se – e nunca se esqueça - que o amor que nos damos é a força de que realmente precisamos. Perdoe-me!
Perdoaram-se mutuamente e fizeram amor como nos primeiros dias, na meninice de recém-casados sem experiências de vida, sem eira nem beira... Quando tudo era paz. 

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GRACIAS ANDINAS