quarta-feira, 4 de maio de 2011

Vicissitudes da Vida – O plágio do Afortunado

Segue outra historieta cujo impacto, quando narro nos círculos de colegas, é para causar alguma impressão; ou apenas para tentar tornar os encontros mais graciosos.
Não é minha a autoria do enredo. Ignoro o imaginativo criador – quem souber que me conte, por favor, sim?
[É de bom juízo que eu registre isso, pois além de crime, se apropriar de coisa alheia é indigno até para nulidades desconhecidas]
Foi-me dito por alguém, que... Não me lembro quem me brindou com a anedota. Mas se lembrar, prometo que lhes digo.
Por agora emprego meu jeito, pois, como “O Plágio do Santeiro”, jamais a percebi escrita:

Um sacristão – homem humilde de berço e de aproximados cinqüenta anos – seguia a vida modorrenta cheio de graça e alegria.
Podia-se dizer que sua vida era a sacristia. O adro, a nave e alfaias da igreja eram sua felicidade. Tinha quarenta anos que se empenhava em limpar e organizar os objetos e o lugar, recebendo, a cada missa, todos os fiéis e infiéis, sempre com um indizível prazer.
O pároco também era o mesmo desde sua meninice, com quem se relacionava filial e gentilmente, referindo-se a ele sempre como “meu papai da fé”.
Porém o tempo tinha passado mais rápido que os dias e décadas e já o religioso mal se sustinha nas pernas. Vinha chegado o momento de descansar da missão de cuidar do rebanho, cevar as almas, cultivar as virtudes.
Para seu santo lugar fora destacado um austero alemão (ou norueguês; nunca se soube): um padreco cheio de nove horas, recém formado, adepto de idéias modernas sobre erradicação de causas de evasão da igreja.
Arauto das novas técnicas administrativas da religião, julgando-se perfeito núncio, convocou urgente reunião com os principais colaboradores, as carolas e os santarrões mais abastados e letrados da paróquia.
- Bem, amados! - o sotaque é de difícil escrita - Faremos um cadastro completo de todos os nossos fiéis, a partir do qual teceremos os eventos deste exercício. Dirigiu-se ao sacristão: “O senhor: liste num papel timbrado, na próxima missa, os nomes, endereços, telefones, gostos e talentos...”
- Mas seu padre, eu não posso...
- Por que o senhor não pode?
- É que eu não sei ler, nem escrever – disse o sacristão com vermelhidão de vergonha, olhos fitos no quadriculado do piso recém colocado do gabinete, o último ato de decoração do velho pastor.
O jovem nórdico (ou germânico), à vista de tão grande contrariedade aos seus planos, desferiu sem apelação:
- Então, comigo o senhor não trabalha. Não posso admitir tão alta comissão a alguém que não saiba escrever. Não, sem chance! Por favor, recolha seus pertences pessoais, passe na tesouraria, retire alguma importância com o caixa e siga sua vida.
- Mas, padre, eu não sei fazer mais nada! Minha vida inteira é este lugar, estas luzes neste teto, este chão impregnado de passos santos, estas paredes e muros - meus confessionários, minha razão. 
- Não adianta insistir. Retire-se.
Macambúzio então, o sacristão saiu. Sequer pegou qualquer dinheiro na tesouraria.
Ia gotejando suas lágrimas pelas ruas, desconsoladas como ele. Sentindo-se humilhado e findo.
De repente, uma latinha descartada no meio-fio tilintou ao seu chute involuntário. Sem mais nada, chutava a latinha como para se achar ainda vivo e manter a tênue sombra de lucidez.
À medida de suas percussões o recipiente emitia sons diferentes: ora alto, ora baixo, ora agudo, ora silêncio. A alternância dos ruídos e o movimento o divertiram muito e afastaram a crueza da dor.
Levou a lata para seu quarto. Aliás, era o quarto a sua casa: uma acomodação de tempo indeterminado que uma das beatas lhe fizera quando ele ficou completamente órfão.
Naquele laboratório de improviso, o ex-sacristão elaborou um artefato incrivelmente simples e belo: um brinquedo para todas as idades.
Dez anos mais tarde, sentado à frente de uma mesa repleta de papéis chancelados pela alta gerência da instituição financeira, sua visão periférica captou a imagem esquálida do padre europeu, que saia do banco abanando a cabeça em sinal de desgosto pela negação de aditamento de um empréstimo que contraíra para um projeto da igreja.
- Como dizia, doutor José, eis aqui os papéis necessários à aplicação de parte de seu capital, que lhe permitirão obter rendas mensais e capital de giro para suas empresas no exterior.
Continuou o gerente: “Doutor José, por favor: assine aqui, por gentileza?”
José estacou e recuou a memória à cena do antigo escritório do “papai da fé”:
- Eu não posso. Não sei ler, nem escrever. – Disse ao gerente.
- Mas como é possível, doutor José? Se o senhor é um rico empresário, um magnata, sem saber ler e escrever, então o que seria se soubesse?
E José da Silva disse:
- Eu seria apenas um sacristão.

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