segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Amar hoje

Com os netos ao pé de si, os mais crescidos juncando o assoalho lustroso e os outros aconchegados no colo, ele contava a história, enquanto na cozinha sua mulher, arqueada nos anos, mexendo a massa do bolo, passeava em cada fonema da sua voz. Os filhos – vendo impossível impedir a narração imprópria para as crianças - compartilhavam daquela delícia, discretamente encostados nos batentes das portas, sentados nos umbrais, ou debruçadas nos peitoris das janelas amplas da casa recém adquirida, presenteada ao casal pelas bodas de diamantes.
Narrava:
A beldade estacou ao ouvir a pergunta daquele amante fortuito, interrompendo instantaneamente as massagens que lhe fazia. Haviam se amado já duas vezes. Tinha duas horas que estavam juntos.
Encontraram-se num esbarrão de acaso, sob a marquise do restaurante caro onde ela, linda e irresistível, costumava investir a exuberância sobre a lascívia de engravatados e playboys ociosos. - Momento aquele, aliás, muito oportuno, pois rendeu negociação bem mais simples do que normalmente requeriam os sofisticados assédios com que seduzia a requintada clientela: os efusivos cumprimentos ao empertigado gerente - que ela repugnava, mas a quem devia uma paga mensal pela acessibilidade -; as gorjetas dos afortunados garçons; a bebericação em taças de vinho – que embora odiasse, supunha compor a postura correta do lugar -; as poses e trejeitos, o porte e maneiras, as conversas enviesadas, incompletas, de mau gosto e nenhum interesse, até a revelação da sua obviedade.
Raro era regatearam o preço e sentia-se livre. Por isso preferira ali, a casas especializadas ou às calçadas.
Foi um encontra acidental, quando o homem acabara de passar a porta giratória, e ela, por distração tola – talvez com a maquiagem retocada pouco antes, que se havia transtornado por causa dos beijos (excepcionalmente cedidos) durante um rápido atendimento matutino -, embateu-se de corpo inteiro, desequilibrando, ensejando que o vexado cavalheiro a segurasse virilmente e sentisse a firmeza torneada de suas carnes.
Todo o depois se desenrolou sem embaraço. O homem, elegante e educado, porém prático e experiente, amavelmente dispensou qualquer artifício.
Agora estavam no quarto do apartamento de nababo, no hotel, nus e perfilados.
A mulher desatou no choro. O homem, vendo tamanho sofrimento sem o que justificasse, emendou:
- Não peço que seja apaixonada por mim ou que tenhamos filhos; nem mesmo que faça amor comigo sem que tenha vontade. Quero apenas que me deixe te amar.
- Por quê? Não nos conhecemos, você não sabe minha história... Como...? Eu nem sei quem é ou quê é você! Você é maluco ou coisa assim? – simultânea, sua vida se apresentava veloz: a cidade sem futuro, os pais desesperançados, a fileira de irmãos, a escolinha, o primeiro namoro, os outros namoros, as decepções, a orfandade, as companhias, os sedutores, o primeiro dinheiro, os amantes, os quartos... Aquele quarto.
- Que diferença faz? Ainda que vivamos juntos pela eternidade jamais saberemos, de nós mesmos, quem realmente somos. Importa, hoje, teu jeito, teu cheiro, tua voz, tua sombra, tua cor, teus erros e acertos, tuas hesitações e medos, teus pensamentos e atitudes... Teu tudo me faz te amar no hoje – e as lembranças passaram num modesto jorro: a secura de alegria na infância, o hiato da existência, as primeiras cãs, aquela mulher.  
À noite, ao se deitarem, a mulher repousada em seus braços pediu que ao menos mentisse a respeito da vida que tivera, pois, mesmo que ninguém soubesse, sentia-se constrangida. Ele a abraçou forte: “Importa o hoje, o teu tudo me faz te amar”. 

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GRACIAS ANDINAS